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sábado, 10 de dezembro de 2011

INVERSÃO DE VALORES


Este texto foi postado em outro blog meu em 10/08/2011. Penso que ele merece uma análise pelos meus colegas de profissão, especialmente pelos que cultivam o raciocínio circular.
Não é raro ouvir alguém dizer que vivemos em uma sociedade cujos valores estão na ordem inversa. Alguns fundamentalistas religiosos procuram intimidar os jovens para que não estabeleçam relações com pessoas que não sejam da mesma fé por entenderem que  tais pessoas vivem sob a influência dessa sociedade de valores invertidos.
Embora eu também já tenha repetido esse discurso alienante, confesso que sempre tive dificuldades em identificar o que há de errado com a sociedade, ou com esses discursos, em relação aos valores. Repetia o discurso porque era mais alienado do que sou hoje e achava que a voz dos líderes religiosos era a voz de Deus.
Não imaginava que havia todo um complô, inconsciente para muitos, para manter a juventude sob controle. Um controle pelo medo e pela ignorância.
Hoje quero convidá-lo a pensar sobre essa questão.
 Se for verdade que presenciamos uma inversão de valores então é de se supor que em algum tempo no passado esses valores estiveram ordenados e forma correta. Nesse caso podemos perguntar: Quando ocorreu isso? Em que ordem estavam os valores quando se apresentavam corretamente ordenados? Em que a “inversão” atual é prejudicial?
Que  algumas pessoas tenham os seus valores pessoais invertidos em relação ao contexto social onde vive parece ser fácil de observar. É para evitar que essa distorção se alastre que existe a educação. A igreja também deveria contribuir com a educação para que tivéssemos menos pessoas vivendo na contramão dos valores sociais vigentes.
Uma coisa são os valores pessoais, outra coisa são os valores defendidos pela sociedade. Como educador penso na sociedade. A educação deve preparar o indivíduo para viver sem sociedade. Tenho que pensar nos valores sociais e me nortear por eles.
Dizer que a sociedade como um todo está com os seus valores invertidos é uma expressão dúbia, nebulosa, porque não se diz em relação a que, ou em relação a qual época, se faz a afirmação. O que saiu do lugar e o que ocupou o seu espaço? Isso nunca é dito.
Tudo que não tem uma referência não permite uma avaliação. Se não é apresentada uma referência como saber se o discurso está  ou não correto?
Da minha parte, fico tentando adivinhar o que querem dizer com isso. Procurei pensar como seria a ordem correta dos valores e para isso percorri meus fragmentos de  história. Como não sou acadêmico da área de história ou de sociologia não possuo texto completo ou algum autor de referência. Tenho que trabalhar com os fragmentos que minha precária cultura escolar me proporcionou.
Mesmo com essa deficiência intelectual, e bibliográfica, penso que é possível tecer algumas considerações sobre um assunto tão importante. Não discutirei o que é valor e como ele se constrói. Vou direto ao ponto: o discurso  da inversão.
1. Desde que se tem notícia, ou o que os meus fragmentos históricos me contam, os homens (gênero masculino) sempre ocuparam posição de destaque em relação à mulher. Ele dava ordens, podia repudiá-la e podia “educá-la”, isto é, domesticá-la à chicotadas. Na família ele era o chefe e ela era a subalterna. Ele o livre e ela, a dependente. Talvez encontremos algumas exceções ao longo do tempo, mas são “pontos fora da curva”. A regra era: o homem mandava e mulher que tinha juízo obedecia. Penso que essa era a ordem “correta” no relacionamento entre homem e mulher. Era a ordem historicamente construída a partir dos primeiros seres humanos.
A superioridade do homem era um valor inquestionável, um bem inestimável. Algo que o homem não queria e nem poderia perder.
Em algum ponto da linha do tempo, porém, alguma coisa começou a mudar e hoje ela fala de “igual para igual” com ele, tem identidade própria, administra empresas e já chegou à presidência de alguns países.
Ora, se a ordem “correta” dos valores é o homem mandar e a mulher obedecer então há uma inversão aí, não há? Hoje ela manda e milhões de homens obedecem.
2. Naqueles tempos de valores ordenados “corretamente” a criança não era objeto de preocupação. Se fosse um filho homem, ainda trazia um pouco de esperança e alegria para os pais. Se fosse “ela” restava a expectativa de arrumar um bom casamento, com alguém que pagasse um dote.
Escola, para que? Criança tinha era que trabalhar para pagar o seu alimento e ajudar a pagar o alimento dos irmãos menores.  Direitos? Ela (a criança) tinha sim o direito de apanhar em silêncio ainda que fosse espancada por simples capricho do pai.
A ordem “correta” da relação era a hierarquia: homem, mulher, filhos.
Tem algo diferente hoje. Criança tem direitos, ela estuda e tem que ser tratada com respeito. Será essa uma das inversões tão questionadas?
3. Os reis, príncipes, nobres e senhores feudais podiam tudo. O povo não podia nada. Eles tinham servos, cavaleiros de honra, ditavam as regras e tinham direito à lealdade dos seus súditos. Ao povo cabia ter que se contentar em cumprir ordens, dever favores, aceitar humilhações, enfim, viver de favores. Hoje o povo faz greve, recorre à justiça, requer salário digno e atenção básica de saúde, pede segurança e escola para os filhos. Talvez essa inversão de valores esteja incomodando. Talvez achem estranho que os “nobres” devam favores ao povo.
4. O que se passava nos arredores dos palácios era sigilo. Somente os mais chegados sabiam da humilhação que as mulheres passavam nos haréns. Os nobres (não) se enriqueciam ilicitamente. Eles (não) praticavam a corrupção. Ninguém ouvia falar da exploração sexual de meninas. Uma ou outra mulher “fofoqueira” deixava escapar alguma coisa, transmitindo o seu grito sufocado de socorro para ouvidos que não ouviam. Hoje a imprensa escancarou as portas do palácio, denuncia a corrupção e expõe perante o público as mazelas da “nobreza”.  Será isso uma inversão de valores?
5. Os reis herdavam o trono por determinação divina. Eles eram os filhos dos deuses e a voz deles era a voz de deus. Hoje, no regime democrático, a “voz do povo é  a voz de deus”. A seta indicadora de direção está invertida, não está? Agora  a ordem é outra, não é mais aquela ordem “correta”.
6. Os reis eram os mandatários supremos. Destituíam a quem eles queriam, sufocavam rebeliões, massacravam multidões. O trono era inatingível pelo povo. Hoje, os “caras pintadas” saem às ruas e forçam o impeachement de um presidente. Isso está na ordem “correta”?
7. No passado os pais eram os sábios da família. Eles conheciam o mercado, faziam negócios, iam à cidade, etc. Portanto, os únicos bem informados e os donos da verdade em casa. Atualmente os filhos estudam e questionam a sabedoria dos pais. Essa inversão de incomodar um pouco, não?
8. Os pais (os homens) faziam o que queriam e eram inquestionáveis. Vemos na atualidade filhos pequenos questionando os pais quando ultrapassam o sinal vermelho ou não usam o cinto de segurança. Valores invertidos, sem dúvida.
Quando ingressei na carreira do magistério logo me vi envolto em debates sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e sobre  a proteção de animais. Estranhei profundamente tudo isso. Parecia que o caos estava se instalando. Estavam brigando por direito dos animais e por direitos dos alunos, mas,  e os direitos da gente onde ficavam. Gente para mim eram o professor e os pais. Aluno não era gente, criança não era gente. Proteger animal não era coisa de gente. Eu não entendia que a proteção dos animais vai além da discussão ecológica, no seu aspecto físico, tem muito a ver com a ecologia social. Quem acaricia um cão dificilmente chuta uma criança. Que protege um animal terá mais facilidade para cuidar do seu próximo. Uma sociedade que protege os indefesos animais, por certo, protegerá os seres humanos também.
Espera-se que uma criança protegida da violência seja uma defensora da paz. Crescerá sem ódio, sem desejo de vingança e, supostamente, defendendo as outras crianças.
Os valores estavam, de fato, se invertendo naquela época e apanharam-me de surpresa. Os seres humanos estavam sendo violentados nas favelas cariocas e as ONGs defendendo os animais? Tudo parecia confuso, mas hoje está claro que sempre se começa por algum lugar. Hoje eu sei que algo tem que ser feito para quebrar a rotina, mudar a ordem vigente para iniciar um novo caminhar. Eles quebraram a ordem e agora a diferença já pode ser vista.
Talvez o leitor consiga se lembrar de outros casos de inversão de valores que possam estar incomodando e provocando esses discursos nebulosos e também possa estar se lembrando de alguma experiência sua em que foi preciso quebrar a ordem vigente para mudar o rumo da história.
É evidente que existem dezenas de outros fatores e inúmeras inversões que parecem não ter surtido os feitos esperados. Hoje, por exemplo, somos muito mais estressados. Bem, isso é o que dizem. Tenho cá minhas dúvidas. Será que o homem, chefe de família, que servia a um feudo não tinha estresse? Será que a vida sem perspectiva e a provável investida do senhor “contra” a sua esposa, enquanto ele trabalhava, não lhe dava estresse? Talvez não porque sem conhecimento não há conflitos íntimos (ver artigo sobre conhecimento e certeza), a ignorância anestesia, mas era isso que queríamos para nós? Será que não preferimos o estresse?
Bem, o certo é que não havia “volantes assassinos”, “cruzamentos perigosos”, bêbados no volante, etc., mas será que o que existia não era pior? A “peixeira”, a espingarda e as tão comuns vinganças familiares que dizimavam famílias seriam algo melhor do que os acidentes de hoje?
O certo é que não estamos bem. Muito há ainda para melhorar, mas, o leitor acha mesmo que estamos piores? Todas as inversões foram para pior?
Eu não gostaria que minha filha e minhas irmãs tivessem vivido naqueles tempos tão saudosos para muitos. Prefiro vê-las neste tempo de valores invertidos. Fico feliz em pensar que meu neto nasceu agora, na sociedade de valores invertidos. Tenho inveja de quem consegue inverter certos valores.
Antonio Sales   profesales@hotmail.com
Nova Andradina 10 de julho de 2011

domingo, 4 de dezembro de 2011

RACIOCÍNIO RIZOMÁTICO

O que é um rizoma? O minidicionário Gama Cury da Editora FTD, publicado em 2001, assim o define: “Rizoma s.m. (Bot.) Caule subterrâneo, cuja face inferior produz raízes adventícias e cuja face superior emite rebentos que vêm à superfície”.
Traduzindo isso para a linguagem popular diríamos: que rizoma é a “raiz” de plantas como a bananeira e as gramíneas, por exemplo. Ele (o caule) percorre o subsolo (oculto aos olhares displicentes) e vai “soltando” brotos onde menos se espera. O curioso é que cada broto transforma-se em uma nova planta independente da planta-mãe. Pode-se cortar ou arrancar a planta que o originou e o broto não se “incomoda”, não sofre abalo.
É importante ainda lembrar  que o rizoma não tem direção  definida do ponto de vista de quem olha da superfície, isto é, nunca se sabe por antecipação onde aparecerá o novo broto. Assim é o raciocínio rizomático. É difícil saber aonde ele vai “parar”.
O raciocínio linear, por sua vez, tem uma direção definida. É possível prever a conclusão logo no início do discurso. É o raciocínio cultivado pelos matemáticos. É empregado também na escrita, especialmente nos textos técnicos. Todo texto escrito em papel tende a ser linear. Um parágrafo leva ao outro, uma ideia leva à outra e o leitor vai seguindo passo a passo e fazendo conjeturas sobre o final.
O raciocínio circular tem um foco central e gira sempre em torno dele. É muito comum entre os professores. Eles elegem uma ideia básica e toda conversa gira em torno dela. Por exemplo, uma frase muito comum é: “o aluno não quer nada com nada” ou suas variantes do tipo: “aluno não estuda”, “ aluno não tem educação”. A partir dessa ideia central ele constrói toda a história do seu fracasso profissional, das suas frustrações. A conversa adquire contornos já conhecidos por todos nós. Uma hora ele diz: “Fazer isso vai ser trabalho perdido porque o aluno não quer estudar”.  Outra hora ele afirma: “como o aluno não quer estudar então isso não dará certo”.
Às vezes a gente ouve: “não vou participar de cursos de atualização porque não ensinam a gente trabalhar com esse aluno que não quer nada”. Depois: “se o aluno não quer nada, para que vou fazer curso de atualização pedagógica ou estudar mais?”.
É preciso romper com o raciocínio circular se quiser avançar.
Tenho vontade de desenvolver o raciocínio rizomático. Tenho muita dificuldade em operacionalizá-lo. O meu raciocínio é linear e já foi circular. Melhorei bastante ao linearizar o meu raciocínio. Pelo menos ele avança em alguma direção.
Nessa época das Tecnologias da Informação e da Comunicação já é possível exemplificar o raciocínio rizomático: o hipertexto.
O leitor vai lendo e de repente aparece um link. Ele pode continuar a leitura até o próximo link ou dar outra direção ali mesmo porque ao abrir o primeiro link ele se deparará com outros links e talvez nunca mais volte ao texto original.
Fico pensando onde e quando acontece o raciocínio rizomático em sala de aula.
Como professor de Matemática quantas vezes não entrei em sala com uma organização didática esquematizada conforme o meu raciocínio linear. Desenvolvia todo o processo da aula e depois ia frustrado para casa porque saía da aula com a sensação de ter falado no vazio.
Comecei a pensar no que poderia estar acontecendo e imaginei a seguinte cena:
Eu, professor, todo entusiasmado falava e escrevia sobre fatoração de polinômios, por exemplo. O aluno, por sua vez, estava pensando na bronca que levaria à tarde quando o pai chegasse a casa embriagado. Havia um “link”, invisível para mim, entre a minha aula e a sua miséria. Ele pensava em como aquilo tudo poderia livrá-lo daquela vida que levava. Quando os polinômios o tornariam independente do seu pai?
Outro exemplo: o professor falando de Pedro Álvares Cabral e a sua esquadra e o aluno pensando em como seria o seu final de semana sem a merenda escolar. O “link” seria: o que será que eles comiam enquanto viajavam?
Poderia acontecer também dos sentimentos passionais se aflorarem quando um garoto via entrar na sala uma jovem professora. Ou ainda, será que uma adolescente sobrecarregada de hormônios e entediada com a família não poderia estar vendo  no professor o cavaleiro que a arrebataria daquela situação?
O que dizer de alguns gestos repetidos do professor, aqueles chamados “tiques nervosos”? Será que eles não são “links” para um raciocínio rizomático? E as reclamações do professor, que “links” será que elas formam?
Uma vez um aluno disse que admirava muito certo professor. Perguntei pela razão dessa admiração e a resposta foi inusitada: “esse cara é inteligente, veja só a mulher bonita que ele arrumou”.
Comecei imaginar para onde ia o pensamento daquele acadêmico quando o tal professor entrava em sala. Sua presença era um “link” para o pensamento do acadêmico.
Foi na década de 1980, mas ainda hoje me recordo os detalhes da cena que vou descrever. Dava aulas no sétimo ano e percebi desde o primeiro dia uma aluna “ausente”. Nada do que eu falava parecia lhe interessar. Arrumei exemplos, fiz perguntas e  tudo em vão. Um dia, lá pela terceira semana de aula, ela interrompeu a minha exposição da matéria dizendo: “professor, posso fazer uma pergunta?”. Fiquei todo feliz. Havia conseguido “acordar” a moça. Preparei-me para responder com classe e elegância a pergunta dela e, então, ela perguntou: “professor, o senhor rinsa o cabelo?”. Fui pego de surpresa e, como até hoje não sei o que é “rinsar”, respondi-lhe que não. Ela voltou para o seu mundo e na próxima semana não apareceu mais.
Fico pensando: será             que se eu tivesse perguntado para o que é “rinsar” ou para que serve “rinsar” não teria conquistado ela para as aulas de matemática? Pura especulação, mas teria tentado fazer um link.
É dessa forma que eu imagino que, muitas vezes, acontece na sala de aula. Nasce mais “grama” dos “rizomas” do que conhecimento sistematizado. São muitos os links.
Saindo desses links acidentais podemos pensar nos links planejados pelo professor. Por exemplo:
1. Pode-se contextualizar, isto é, relacionar o que está sendo estudado com alguma coisa do cotidiano.
2. Podem-se estabelecer vínculos entre aquele tema que está sendo abordado e outros temas da mesma disciplina.
3. Pode-se estabelecer vínculo entre o passado e o presente. Fazer a contextualização histórica.
4. Pode-se praticar a interdisciplinaridade.
Ao fazer assim estaremos estimulando o raciocínio rizomático.
Campo Grande, 03 de dezembro de 2011.
Antonio Sales   profesales@hotmail.com

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

ALGUNS VÍCIOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Que a educação no Brasil carece de qualidade parece ser consenso geral. Pelo menos todos falam a mesma coisa. Talvez até já seja um vício falar mal do professor e da educação, mas de qualquer forma estou disposto a concordar que algo não vai bem.
Temos uma cultura de não valorizar o conhecimento. Valorizamos mais a esperteza. As oportunidades de conseguir alguma coisa sem esforço nos fascinam. Parece que somos um povo cansado de trabalhar sem resultados, sem valorização, sem reconhecimentos.
Na educação não é diferente porque nossos alunos são produtos dessa cultura de que não vale a pena se esforçar. Pensam que não vai mudar muito a sua condição e perguntam: para que estudar?  Há também a cultura de que o professor é o  responsável pela aprendizagem do aluno. A forma clássica de aula onde o professor escreve tudo no quadro e o aluno copia e tenta decorar reforça essa postura de responsabilizar o professor.
Parece evidente que há exceções e que algumas escolas conseguem amealhar uma clientela que pensa diferente. Temos também professores que trabalham na perspectiva de envolver o aluno no processo. Já descobriram que copiar o livro no quadro para o aluno copiar no caderno é um atraso de vida. Mas esse ainda é um dos vícios da educação: copiar, memorizar, “papagaiar” na prova e jogar fora depois.
De forma geral, porém, esperar tudo do professor  é o espírito que permeia a clientela estudantil. Aqueles que estudam fazem-no por conta própria, isto é, na contramão da cultura geral. Às vezes são até mal vistos pelos colegas que conseguem nota e sem esforços. Reprovar “todo mundo” deixa o professor em uma situação delicada e por isso dá-se um jeito. Por outro lado, se o professor não é reflexivo, não teoriza a sua prática, não sabe justificar o seu procedimento e nem os resultados, é melhor que não reprove mesmo. Na dúvida, a favor do aluno.
Essa cultura de estudar pouco e esperar tudo do professor, que também não sabe o que fazer ou porque faz, têm produzido muitos vícios no ambiente escolar. Vícios que dificilmente serão superados porque se transformaram em círculos viciosos.
Um desses vícios é a revisão para a prova. As últimas aulas antes da prova são dedicadas à revisão da materia em sala de aula. Pressionado a produzir resultados em uma clientela que não estuda o professor viu-se obrigado a fazer revisão. A moda pegou e virou um círculo vicioso. O professor faz revisão porque o aluno não estuda e o aluno não estuda porque o professor vai fazer revisão.
O professor não cobra na prova o que não “deu” na revisão e não revisa o que não vai cobrar na prova. Isso é o mesmo que avisar ao aluno quais os itens que cairão na prova e o aluno não se esforça (“não tira nota” ) porque ainda terá a recuperação.
 As revisões diminuem o tempo de fazer o processo andar ( atrasa o quantidade de conteúdo estudado)  e o processo não pode andar porque senão o conteúdo não “cabe” nas revisões.
Depois disso tudo dizem que a escola brasileira não ensina e que o professor é o único culpado. Penso que é mesmo porque ele, como profissional, deveria reagir quando lhe pressionam pela nota. Ele deveria focalizar esses fatores culturais e sociais que atravancam o seu trabalho. Deveria pensar em outras formas de agir. Afinal, ele é profissional para quê?
A escola como um todo, por sua vez, deveria pensar no problema de forma mais ampla do que simplesmente na nota do aluno. Precisa pensar em uma forma de combater essa cultura funesta e romper com esses vícios. Precisa encontrar saídas mais inteligentes do que ficar concentrada em notas.
O professor elabora uma prova fácil para que o aluno possa “tirar nota” e o aluno não estuda porque a prova será fácil e não o desafia. Não quero dizer que se devem elaborar provas difíceis. Estou propondo que se pense o problema a  partir de outra perspectiva. Qual? Estou lançando o desafio. Vamos pensar juntos. Afinal, somos intelectuais.  A escola deve ser um espaço de reflexão e o locus de formação e reformulação de hábitos.
O aluno “cola” porque as questões são exatamente iguais as que foram estudadas em sala de aula e o professor inclui as mesmas questões na prova para ver se o aluno não precisa colar.
Não é mesmo um círculo vicioso?
Nova Andradina, 30 de novembro de  2011.
Antonio Sales  profesales@hotmail.com

domingo, 13 de novembro de 2011

EXISTE CRIME PEDAGÓGICO?


Nunca tinha lido nada a respeito. Nunca ouvira falar em crime pedagógico. Será que já está definido por algum teórico?
Como me surgiu essa ideia de crime pedagógico?
Certa vez conversava com um colega que é coordenador de matemática do programa “Além das Palavras” de uma escola pública. A nossa conversa era informal, mas sabendo que me preocupo com questões relativas da ética profissional ele começou a falar dos problemas que encontrava, como coordenador, para conseguir com que certos professores fizessem adesão ao programa. Contou a cena vivida certo dia e que o deixou abatido.
Segundo ele a professora Marcolina (nome fictício) era contratada  e já estava na escola há vários anos substituindo alguém que estava em outra função. Marcolina oferecia resistência a qualquer proposta que se lhe fizesse  e quando era pressionada chantageava dizendo que podiam manda-la embora porque ela não iria aderir. Era desaforada. O resultado é  nunca aderiu a nada e nunca é foi mandada embora.
Lembrou, incusive, que já havia me convidado para conversar com ela certa vez e que depois da minha saída ela se juntara a outras  e protestava contra a minha avisita à escola renegandotudo que eu dissera ,  saber qual e ainda explicações sobre motivo de se convidar alguém de fora para opinar sobre o trabalho dela.
Não me lembro bem do incidente mas, pelo meu modo de agir, sei que  não me intrometi no trabalho dela. Apenas devo ter falado sobre didática da matemática e, com certeza, sugerido formas de abordagens ou de organizar uma  atividade didática.
Mas a história é a seguinte: ele sempre procurava acessorar essa professora no seu horário  semanal de planejamento  mas ela sempre fugia dos encontros marcados. Nesse dia ele foi visitar a sua sala de aula e a cena que viu o estarreceu. Ela estava ensinando geometria. O quadro estava cheio de informações sobre geometria e os alunos estavam copiando.  Ele previu que quando os alunos terminassem de copiar também teria terminado o horário de aula e então concluiu: é uma aula do tipo “cala boca”. Ela enche o quadro e põe os alunos para copiar para não ter que explicar nada.
Indignado com a história retruquei: isso é um crime pedagógico. Pronto,  havia “criado” essa categoria e agora preciso ver se já existe definição para ela.
Para mim essa professora comete um crime pedagógico e as pessoas que a mantinham no cargo eram seus comparsas. Pessoas em alma, sem respeito para com as crianças. Pessaos que veem-nas “massacradas”, têm o nada fazem por comodismo.
Já encontrei professores universitários que se recusam discutir questões pedagógicas. Um chegou alegar que no seu tempo de acadêmico havia um “professor que era um troglodita” e mesmo assim era respeitado. Só não falou por quem era respeitado. Segundo ele hoje ainda deveria ser assim. Usou em defesa dessa posição a “teoria” da vocação para o magistério. Tem professor que não consegue melhorar, disse ele. Tentei argumentar mas ele interrompeu a conversa. Precisava sair. 
Defender uma prática troglodita em pleno século 21 é, no meu entender, um crime pedagógico.
Certa vez, em uma reunião com um candidato a reitor, propús que incluísse  no seu programa  administrativo a capacitação de professores. Expliquei que ela não deveria ser confundida com outra já existente na instituição, uma capacitação de pesquisadores que, erroneamente, recebe o nome de capacitação docente. A proposta teve rejeição imediata. Argumentei que ser professor e ser pesquisador são atividades distintas. Houve “concordância” mais para desviar o assunto.
Fiquei pensando: até quando seremos coniventes com o crime pedagógico?
Muitos pensam que pesquisar sobre X é a mesma coisa que educar usando X. Posso saber muito sobre X e não estar preparado para ser um educador utilizando X. Isso acontece porque não ensino X para X. Normalmente quando X é meu objeto de pesquisa ele não é o meu objeto de educação, não é o meu educando. Posso pesquisar X, sendo X o meu aluno mas, raramente, o uso  para ensinar a ele mesmo. Quando a pesqusia tiver terminado ele terá passado.
Preciso conhecer relativamente bem X, mas preciso conhecer também as relações que as pessoas podem estabelecer com X, e as relações que X provoca entre as pessaos.
Portanto, preciso conhecer X, mas preciso conhecer também A e P. Por extensão preciso entender também um pouco de S. De preferência, entender  de Sa, onde A=alunos, P=pessoas, S= sociedade e Sa=sociedade atual.
O professor deve estar inserido no contexto educacional atual para que o seu ensino não seja alienante. Precisa conhecer sobre pessoas, saber levar em conta a suas frustrações e necessidades. Precisa levar em conta as exigências da sociedade atual, o que ela espera  do seu educando. Ninguém é pago pela sociedade para fazer o que quer. Somos pagos para cumpirir funções sociais e essa  sociedade deve ser “ouvida” na hora de planejarmos nossas ações. Quando se fala de educação a sociedade é ouvida através das pesquisas educacionais.
O professor que não leva em conta esses fatores está cometendo um crime pedagógico.
Paulo Freire afirma que “educação é uma forma de intervenção no mundo”(FREIRE, 2010, p. 98). Afirma ainda que ela não pode ser indiferente a qualquer hipótese. Seja a hipótese  da “da reprodução da ideologia dominante ou a da sua contestação, a educação jamais foi, é,  ou pode ser” indiferente (FREIRE, 2010, p. 99).
Para Freire a educação é ideológica e, por essa razão, cheia de armadilhas. A ideologia pode esconder fatos, distorcer a percepção, levar-nos a concordar com frases que afirmam que “a cada dia que passa os jovens aprendem menos”, que “os alunos faltam à aulas porque não têm interesse” sem nos perguntarmos se não fazemos parte das causas dessa falta de interesse. Essa ideologia impede que perguntemos  se esse “aprender menos” não é falso ou, sendo verdadeiro, se não contribuímos para isso com a nossa pedagogia troglodita.
O  crime pedagógico é produto de uma idelogia. Ideologia de falta de respeito pelo outro. É a falta de consideração para com o investimento social na educação que leva a pessoa a agir com indiferença.
Alguém conhece a definição de crime pedagógico?
Comte Bittencourt (BITTENCOURT, 2003), um deputado estadual do Rio de Janeiro (ou ex-deputado), escreveu em 2003, na sessão opinião do “Globo”, um artigo sobre esse tema, mas ele tratou do défit educacional. Seu foco foi o poder público e consiedrou como crime pedagógico a falta de escolas, de professores, enfim, a falta de investimento público na educação.
O meu enfoque é outro, é a postura do professor.
Dacanal (2009) que se apresenta como “Jornalista, professor e economista” usa o termo para ridicularizar a preocupação com a motivação dos alunos, com uma proposta pedagógica que contemple o prazer de estudar e bsuca de significado. Defende o trogloditismo com base em um único exemplo acertado que talvez até seja hipotético dado o teor do texto. O artigo  não merece uma análise. Trogloditas devem ter espaço no magistério? Precisamos aprender com eles? Não há, nesse universo, gente melhor preparada?
Aguardo contribuições.
Nova Andradina, 12 de novembro de 2011.
Antonio Sales   profesales@hotmail.com


FREIRE, Paulo. A Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
BITTENCOURT, Comte. Crime Pedagógico. Postado em 25 de agosto de 2003. Disponível em <http://comte.com.br/2003/08/25/crime-pedagogico/ > Acesso :  nov 2011.
DACANAL,  José Hildebrand. Eu sou um imbecil. Postado em 10 de junho de 2009. Disponível em  < http://www.endireitar.org/site/artigos/ensino-em-casa-homeschooling/377-eu-sou-um-imbecil > Acesso em:  12 nov 2011.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

NINGUÉM INVESTE EM MIM?

Em meu trabalho como extensionista sempre estou em contato com professores da rede pública de ensino. Tenho encontrado verdadeiros exemplos de compromisso com a educação, de consciência do seu papel, das suas limitações e de busca por aperfeiçoamento pessoal e profissional. Por outro lado, tenho encontrado casos de alienação quase total, de ausência  de objetivos e de busca constante por  desculpas.
São os professores desse segundo grupo que inspiram muitas das minhas reflexões. Desta vez fui buscar nas minhas origens algumas explicações para o meu comportamento que, em muitas oportunidades, se assemelha ao comportamento dos professores do segundo grupo.
Resolvi analisar minha história de vida para ver se alguém investiu em mim.
Quando nasci era, como todos os bebês, um alienado. Não entendia nada (quase nada) do que se passava ao redor. Ficava sem saber para onde fora o escuro quando a luz era acesa e depois ficava procurando o claro quando a luz era apagada. Quando minha mãe em colocava no berço e se afastava devarzinho  eu supunha que tivesse me abandonado e chorava. Em termos educacionais pouco podia ser feito em meu favor além do que foi proporcionado por minha mãe.
Minha mãe investiu em mim. Ensinou-me a falar, andar, respeitar e conhecer o mundo ao redor. Era essa a educação que eu precisava na época. Minhas necessidades educacionais foram satisfeitas.
Cresci um pouco, tornei-me criança, e tive os meus direitos cerceados pela ignorância reinante no meu tempo.  Criado na zona rural, onde meus pais viviam do cultivo de lavouras sazonais, não tive a oportunidade de frequentar a escola regularmente. Hoje percebo que, para uma criança, os adultos devem abrir as portas ainda que ela não queira entrar. O adulto deve abrir a porta e incentivar a criança a entrar por ela. Estou falando das portas de oportunidades. Uso portas no sentido metafórico e, como educador, vejo investimento sempre relacionado com a educação.
Para mim eles não abriram a porta da educação formal, não abriram a porta do conhecimento institucionalizado. Não investiram em mim. Negaram-me a escola, a instrução formal. Consideraram que sabendo assinar o nome estava alfabetizado, que sabendo juntar as letras era o suficiente.
Eu tinha esses direitos, mas, possivelmente, eles não estivessem escritos ou, pelo menos, não eram divulgados. Fui lesado em meus direitos que hoje considero inalienáveis. Sinto falta deles.
Nessa fase da vida a porta deve ser aberta pelo adulto e a criança deve ser instada a entrar por ela. Criança fora da porta corre perigo. Criança não sabe em qual porta bater e não alcança a maçaneta para abri-la.
Quando criança, não investiram em mim. Que bom que os tempos mudaram e hoje se investe nas crianças.
Tornei-me adolescente e comecei observar que diante de mim estavam três portas: a) a porta que o adulto precisava abrir e insistir para que eu entrasse; b) a porta que eu deveria bater e pedir entrada e c) a porta cuja entrada eu deveria recusar. Lembro-me  que colegas e alguns adultos convidavam-me para o uso do álcool e do fumo. Experimentei beber, mas no dia seguinte achei ridículo  tudo o que fizera sob o efeito do álcool e prometi, a mim mesmo, que nunca mais provaria bebida alcoólica. Tenho cumprido a promessa e  fechei essa porta para sempre. Tentei fumar. Achava elegante, parecia adulto. Fiz isso por alguns dias até que meu pai, que era fumante, me alertou que ficaria escravo para sempre. Eu queria ser livre e fechei também essa porta.
Em algumas portas tive que bater para que se abrissem. Aos treze anos tive que procurar uma escola por mim mesmo e ainda tive que trabalhar aos domingos colhendo algodão para comprar os livros. Durante a semana trabalhava para o meu pai.
Algumas portas (não foram muitas) foram abertas  por adultos conscientes e que queriam dar oportunidade a um jovem tímido e despreparado. Eu não tinha maturidade intelectual para perceber que após aquela porta um mundo de oportunidades me esperava. Os adultos tiveram que abri-la e insistir para que eu entrasse.
Deparei-me, portanto, com três portas: uma que estava fechada, mas que foi aberta  graciosamente por um adulto. Ele, além de abrir, convidou-me a entrar e eu aproveitei a oportunidade. Outra que estava fechada, mas permitia antever o que me aguardava lá dentro, e precisei decidir por mim mesmo se queria entrar e ainda forçar a entrada. Encontrei ainda outra porta que estava aberta (escancarada) e tive que fechar definitivamente.
Nessa época aprendi que já não podia esperar tudo dos outros. Alguma coisa era tarefa minha, cumpria a mim o agir por conta própria, procurar, insistir, bater e entrar quando a porta se abrisse. Chegara a hora de começar as escolhas, começar ir delineando os traços do meu destino. Eu investi em mim e mais alguém investiu em mim, embora não muito (a época era outra, as perspectivas eram outras e as crenças eram outras, mas houve investimento).
Tornei-me adulto e muita coisa da minha adolescência se repete. Continuo fechando portas que se escancaram e me convidam ao ilícito, ao comodismo, à busca de desculpas pela minha incompetência, etc. Continuo achando quem abre portas desinteressadamente procurando ajudar-me (não são muitos, mas há). Encontro quem abre portas porque sabe da minha competência, da minha responsabilidade e da seriedade com que cuido das tarefas que me são designadas. Encontro portas fechadas a “sete chaves” que preciso quase arrebentar para obter acesso ao interior do aposento. São portas que somente se abrem mediante projetos bem elaborados.  Porém, uma vez transposta essa porta, descobri que há investimentos à disposição. Pessoas e instituições estão prontas por investir em quem consegue abrir tal porta. Os investimentos, nesse caso, não são na pessoa, mas nos projetos.
São pessoas e instituições que não querem investir no vazio ou no acomodado. Não querem investir em quem não decidiu para onde ir. Mas há investimentos e sempre que tive projetos alguém investiu neles.
Dessa forma, devo dizer que não investiram em mim na infância. O que me trouxe prejuízos incalculáveis porque essa foi a época da minha vida que dependia exclusivamente dos outros.  Poucos investiram em mim na adolescência porque eu não prometia muito: era tímido e sem preparo (fazia-me falta o preparo negado na infância).  Ainda não tinha projetos bem definidos e também por causa das perspectivas da época. Nessa fase da vida algumas portas foram abertas porque eu persisti em bater. Aprendi com isso que eu deveria investir em mim e aproveitar as oportunidades que aparecessem. Deveria definir o meu projeto de vida, mostrar disposição para colaborar, preocupar-me também com o progresso da instituição para a qual trabalho e volver os meus olhares em busca de um bem que pudesse beneficiar algo ou alguém mais além de  mim.
Hoje, quase ninguém investe em mim. A maioria das portas que se abrem são resultados do meu autoinvestimento. Somente não acho isso natural porque me foi negado tal investimento na infância. Caso contrário era isso mesmo que eu esperava que acontecesse: nessa fase da vida eu deveria ser capaz de ter projetos bem definidos.
Apendi que para um adulto a sociedade deve oferecer oportunidades mas não, necessariamente,  atender as suas necessidades em particular. Metaforicamente: a terra não pode ser desértica, mas as pessoas não precisam prover água para os meus animais. Se quiser saciar-lhes a sede devo cavar uma cisterna.
Tenho perguntado aos professores que reclamam da falta de investimento neles: qual é o seu projeto? Para que você quer investimento? O que você fará com a oportunidade que lhe for dada?
Como educador e trabalhando com educandos e educadores penso em investimento sempre relacionado à educação e oportunidades de trabalho. Quanto às questões salariais e outros direitos penso que devem ser discutidas no âmbito dos sindicatos e associações. Eles têm melhor preparo para isso.
Entendo que na fase inicial da vida, na infância, os investimentos devem ser exclusivamente na pessoa. Eles não devem depender de projetos pessoais da criança. Na segunda fase, adolescência e juventude, os investimentos devem ser divididos entre a pessoa e os seus projetos. É preciso saber se o jovem quer seguir carreira acadêmica ou técnica, por exemplo. Na fase adulta os investimentos devem ser, prioritariamente, nos projetos.
O adulto que não tem projetos, que permanece na infância intelectual, requer cuidados especiais. É preciso investigar se lhe foi negado o direito na infância (faixa etária) e então a sociedade deve redimir-se dessa dívida. Mas nenhuma infância é permanente. É preciso ter projetos.
A você, professor, que reclama falta de investimento fica a pergunta: qual o seu projeto?
Dourados, MS, 30 de outubro de 2011.
Antonio Sales    profesales@hotmail.com   

terça-feira, 1 de novembro de 2011

OS DEVERES DA CRIANÇA

Temos dificuldades em aceitar de forma natural, espontânea, que os outros tenham determinados direitos. Às vezes é necessário que a lei explicite certos deveres que nos parecem absurdos. São deveres que certamente não os cumpriremos por estarem na lei, mas estão lá para nos alertar dos direitos dos outros. São explicitados para nos informar de que os outros podem reclamar e para dar suporte ao trabalho dos profissionais da área jurídica.
A lei explicita certos deveres nossos apenas para garantir os direitos dos outros.
Gosto de ilustrar o que falo e por isso apresento um exemplo hipotético como ilustração.
Vamos supor que uma lei preceitue que “toda pessoa casada deve amar o seu cônjuge”. Tal preceito causará risos em muitos cidadãos desavisados porque é evidente que não se ama por decerto, que jamais alguém amará o seu cônjuge porque está na lei. Todos nós sabemos que o amor jorra de outras fontes. No entanto, tal preceito, se explicitado em lei,  nos alertará  de que nosso cônjuge poderá solicitar a dissolução do casamento alegando não se sentir amado por nós ou por sentir-se incapacitado de nos amar.
É um dever explicito que não cumpriremos por estar em lei mas que gera um direito subjetivo. É nessa perspectiva que penso na possibilidade em defender a inclusão de um capítulo sobre os deveres das crianças no ECA.
Como educador acho tal proposta absurda por algumas razões. Primeiramente porque não creio que elas possam entender o que significa dever ou consigam cumprir tal preceito. Em segundo lugar porque temo que algum adulto menos avisado ou, talvez, mal intencionado possa apoiar-se nele para se livrar das suas responsabilidades e, pior ainda, resolver punir uma criança por aquilo que ela nem consegue entender. Em terceiro lugar porque entendo que ninguém deve começar a vida sobrecarregado de obrigações sem, ao menos, ter condições intelectuais para entendê-las. Penso que uma criança não tem  maturidade  educacional, física, social, etc. para cumprir deveres.
Por essas razões, do ponto de vista educacional, as crianças só podem ter direitos mesmo e o principal deles é: o direito de serem educadas para viver em sociedade, para respeitarem os direitos dos outros.
No entanto, considerando o estado atual, o caos que reina em algumas escolas e em algumas famílias cujos pais não sabem o que são deveres penso em defender a inclusão de um capítulo sobre os deveres das crianças no ECA. Alguns deveres serão bem bizarros e a minha proposta é que a penalidade pelo não cumprimento dos mesmos recaia sobre os adultos.
Aqui novamente recorro a exemplificações sem o rigor jurídico na linguagem, é claro. Alguns preceitos que proponho:
Preceito I. Toda criança tem o direito de aprender que tem deveres. O adulto que  não proporcionar tal aprendizagem responderá por negligência educacional. (Obs. Alguém já chamou isso de definição de limites, mas como muitos pais e professores não sabem o que é isso deve-se escrever: “deveres”).
Preceito II. A criança dever respeitar o outro seja ele criança ou adulto. O adulto que não lhe proporcionar ensinamentos relativos a esse dever responderá perante a lei pela negligência. (Obs. Alguém já disse que isso é o mesmo que mostrar para a criança que ela não a única pessoa no mundo. Considerando que muitos pais não respeitam a própria família e outros nem a si mesmos, esse preceito é importante.)
Preceito III. Todo adolescente, se não estiver na escola, deve estar em casa a partir de H hora.  O adulto que permitir a sua permanência fora dos locais indicados após o horário estipulado responderá por infração da lei. (Obs. Isso já foi dito de tantos modos que é bizarrice coloca-lo no ECA mas  como muitos pais ainda não entenderam, e os profissionais da área jurídica precisam de apoio legal para  agir, ele deve ser incluído.)
Preceito IV. A criança deve aprender a estudar. O adulto, pai ou professor, que não contribuir para que esse aprendizado ocorra responderá por incompetência. (Obs. Um pai ou professor que não a gosta de estudar consegue ensinar alguém a estudar? Talvez esse preceito possa permitir que a atuação de alguns professores seja motivo de cuidadosa análise.)
Como pai, avô e educador, tenho consciência de que educar uma criança é tarefa complexa. Ela requer união de esforços entre a família e a escola. Requer pais e professores “antenados” com as transformações sociais, que não sejam saudosistas, que estejam sempre prontos a aprender, que tenham boas intenções e coragem de agir. Que sejam pais e professores minimamente conscientes do seu papel.
Dourados, 30 de outubro de 2011.                                                                                          
Antonio Sales      profesales@hotmail.com