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quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A ESCOLA É SEM GRAÇA




Graça aqui tem sentido amplo. Tanto pode significar bom humor como ter aquela conotação que os religiosos lhe dão: disposição para acolher,  aceitação, disposição para  suportar as limitações humanas,  estabelecer vínculos marcados pela compreensão e diálogo.
Márcio (*) é um garoto de sete anos muito esperto, gosta de estudar e, como filho de um empresário de sucesso, já acompanha o pai em alguns negócios da firma (compra e venda de carros e terrenos, por exemplo). É muito bem humorado também. Conversa  como adolescente e dá gargalhadas como  criança. Estuda numa escola particular.
Pedi-lhe que me falasse da sua escola. Deu uma gargalhada infantil e disse: "ninguém merece uma escola daquela".
Perguntei a razão e ele explicou que a professora é mal humorada e por qualquer coisa que os alunos fazem chama a diretora.
Quis saber o que fazem os alunos e Márcio, após mais uma gargalhada, disse que jogam "aviõezinhos" na professora porque ela é muito chata e eles gostam de vê-la irritada. Talvez ele tenha exagerado um pouco em sua fala, mas há algo revelador.
Manoel (*) também tem sete  anos, é filho de professores, muito esperto  mas não gosta de estudar, embora também esteja matriculado numa escola particular. Detesta ir à escola e sempre fica procurando pretexto para faltar às aulas. Os pais pensam que é preguiça.
Sua mãe é professora universitária e partilha das minhas ideias sobre educação. Sempre conversamos sobre isso. Um dia ela me telefonou. Tinha algo a me contar. Fiquei curioso. Disse-me que o filho lhe pedira para explicar um assunto que não entendera na aula. Após a explicação ele disse: "que legal! Por que a senhora não vai ser nossa professora?!"
Quando ela  disse  que só sabia dar aulas para adulto, o filho, num gesto de quem diz  "se toca, né",  explicou : "é só pegar o livro, copiar no quadro, mandar os alunos copiarem e depois dizer a página". A escola poderia ser mais sem graça?
Milena(*) tem 12 anos, é bem comportada, um pouco tímida e, pelo que deixa transparecer, sem muitas aspirações, mas gosta de estudar.  Também estuda em escola particular. Perguntei sobre a sua relação com escola e ela me disse que gosta da escola porque tem regras. Propus uma brincadeira: eu seria um mágico capaz de fazer desaparecer o que quisesse e ela escolheria o que deveria desaparecer. Pedi que escolhesse o que deveria desaparecer da sua escola e da sua cidade. Não soube definir o que deveria tirar da escola e somente com algum esforço lembrou que deveria fazer desaparecer a poluição da sua idade.
Eu não esperava que todos odiassem a escola. Para alguns ela tem mesmo atrativos; os mais comportados são bem atendidos por ela e gostam da escola. O que me preocupou foi a falta de senso crítico. Não há congestionamento de carros na hora de buscar os filhos no final do turno? Não falta laboratório de ciências?
A escola não produz reflexão, apenas ensina a ordem, a disciplina. Isso é educação? Essa escola forma cidadãos?
Uma vez por mês viajo da cidade interiorana onde trabalho para passar um final de semana na capital do meu estado. Em uma das viagens conversei com Marília (*), entre 15 e 17 anos, terminando o ensino médio, uma menina quem tem sonhos e estuda numa bem conceituada escola pública da cidade. Como sempre, perguntei sobre a sua relação com a escola e especialmente com a Matemática. Estava chateada.  Era abril ou maio, não lembro bem a data, e a classe já estava insuportável. A sua turma e o professor estavam em conflito. Na primeira prova os alunos não se saíram bem e o professor os chamou de irresponsáveis. Foi o suficiente para que a classe se tornasse apática, contrariasse as ordens do professor, inclusive, brincando com o celular durante a aula e o professor se desgastasse em “berros” para conseguir alguma atenção.
Que situação mais carente de graça!
Márcio (*) é Licenciado em Matemática e Mestre em Educação Matemática. Foi meu aluno na licenciatura e antes de ingressar no mestrado foi coordenador de área nos anos iniciais de uma escola publica. Conversávamos muito sobre educação. Um dia ele estava decepcionado e disse que o seu trabalho era sem graça porque tinha que fazer reuniões de estudos com as professoras, mas elas nunca estavam dispostas. Tinha que visitar as salas aula, mas cada vez que assistia a uma aula de alguma professora saía sem saber o que falar porque esta estava tão longe do mínimo  esperado que não sabia por onde começar a fala.
Naquele dia assistira a aula da professora Mercedes (*), professora não efetiva e cuja convocação se repetia por muitos anos por influência da diretora que era sua amiga. A aula, segundo ele, tinha sido pior do que sofrível porque a professora estava "ensinando" geometria no quarto ano, mas gastou o tempo todo copiando o livro no quadro com definições e figuras. Tudo o que tinha no livro foi para o quadro e o aluno copiou. Nada mais aconteceu: nem explicação, nem diálogo, nem exemplificações. "Foi uma aula cala a boca", disse ele. Um dia ele me convidou, com a anuência da direção e coordenação, para uma fala com algumas professoras que estavam com dificuldades para ensinar alguns tópicos da Matemática. Aceitei o convite e no horário combinado estava lá com duas ou três professoras. Conversamos, falei sobre o objetivo daqueles tópicos estarem no currículo e fiz sugestões de abordagens. Mais tarde fiquei sabendo que ele quase foi ele execrado por levar alguém de fora para  lhes falar.
A escola não é apenas carente de atração, é carente também de graça, daquela  graça que dá sentido à vida. A escola é hostil. Ha uma carência de sentido na escola, por isso ela é sem graça.
Malthus (*) também foi meu aluno no curso de licenciatura. Não se identificava com os meus discursos na disciplina de estágio. Queria ser engenheiro ou estudar Matemática Aplicada ou Pura, mas sem opção fez licenciatura e se tornou professor da educação básica.
Nós falamos pouco porque nos encontramos pouco e porque a minha linha de raciocínio não interessa a ele. Sou da Educação Matemática e ele ainda não se identificou com ela. Mesmo assim de vez em quando nos falamos. Ele é coordenador de área nos anos finais da educação básica de uma escola pública e eu sempre estou visitando escolas. Nossos caminhos por vezes se cruzam e falamos sobre educação, mesmo que esse não seja o seu foco.  Não faz muito ele disse: "professor, não sei quem está desmotivando quem, se é o professor quem desmotiva o aluno ou é o aluno quem desmotiva o professor; o que sei é que a sala de aula é um ambiente onde ninguém tem interesse: nem professor e nem  aluno".
Não sabendo o que dizer, perguntei: por onde começar para romper esse círculo vicioso?
Ele, embora não usando exatamente essas palavras, disse que quando sugere alguma atividade para o professor este pede que ele exemplifique em sua sala de aula. Ele vai, mostra que a sua sugestão funciona e fica esperando que o professor se prontifique a prosseguir, mas este diz: você poderia continuar vindo fazer isso aqui? Os alunos gostaram tanto!
A escola é sem graça, porque falta graça (engajamento, disposição) ao professor. O aluno se adapta a essa realidade, reflete isso e reforça esse comportamento.
Paulo Freire, em um diálogo com Papert (divulgado pelo YouTube), afirmou  que escola, para se manter, vai se reinventar.
Reinventar a partir de onde?  Como se reinventar se ainda não se deu conta da sua condição? Normalmente, procuramos pelo caminho quando nos sentimos perdidos, como a escola vai buscar caminhos se sente que está bem?. Ficam as perguntas.
Antonio Sales
Araranguá, SC, 24 de dezembro de 2013.
(*) nomes trocados para evitar identificação.

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