Graça
aqui tem sentido amplo. Tanto pode significar bom humor como ter aquela
conotação que os religiosos lhe dão: disposição para acolher, aceitação, disposição para suportar as limitações humanas, estabelecer vínculos marcados pela
compreensão e diálogo.
Márcio
(*) é um garoto de sete anos muito esperto, gosta de estudar e, como filho de
um empresário de sucesso, já acompanha o pai em alguns negócios da firma
(compra e venda de carros e terrenos, por exemplo). É muito bem humorado
também. Conversa como adolescente e dá
gargalhadas como criança. Estuda numa
escola particular.
Pedi-lhe que me falasse da sua escola. Deu uma gargalhada infantil e disse: "ninguém merece uma escola daquela".
Pedi-lhe que me falasse da sua escola. Deu uma gargalhada infantil e disse: "ninguém merece uma escola daquela".
Perguntei
a razão e ele explicou que a professora é mal humorada e por qualquer coisa que
os alunos fazem chama a diretora.
Quis
saber o que fazem os alunos e Márcio, após mais uma gargalhada, disse que jogam
"aviõezinhos" na professora porque ela é muito chata e eles gostam de
vê-la irritada. Talvez ele tenha exagerado um pouco em sua fala, mas há algo
revelador.
Manoel
(*) também tem sete anos, é filho de
professores, muito esperto mas não gosta
de estudar, embora também esteja matriculado numa escola particular. Detesta ir
à escola e sempre fica procurando pretexto para faltar às aulas. Os pais pensam
que é preguiça.
Sua mãe é
professora universitária e partilha das minhas ideias sobre educação. Sempre
conversamos sobre isso. Um dia ela me telefonou. Tinha algo a me contar. Fiquei
curioso. Disse-me que o filho lhe pedira para explicar um assunto que não
entendera na aula. Após a explicação ele disse: "que legal! Por que a
senhora não vai ser nossa professora?!"
Quando ela
disse
que só sabia dar aulas para adulto, o filho, num gesto de quem diz "se toca, né", explicou : "é só pegar o livro, copiar
no quadro, mandar os alunos copiarem e depois dizer a página". A escola
poderia ser mais sem graça?
Milena(*)
tem 12 anos, é bem comportada, um pouco tímida e, pelo que deixa transparecer,
sem muitas aspirações, mas gosta de estudar.
Também estuda em escola particular. Perguntei sobre a sua relação com
escola e ela me disse que gosta da escola porque tem regras. Propus uma
brincadeira: eu seria um mágico capaz de fazer desaparecer o que quisesse e ela
escolheria o que deveria desaparecer. Pedi que escolhesse o que deveria
desaparecer da sua escola e da sua cidade. Não soube definir o que deveria
tirar da escola e somente com algum esforço lembrou que deveria fazer
desaparecer a poluição da sua idade.
Eu não
esperava que todos odiassem a escola. Para alguns ela tem mesmo atrativos; os
mais comportados são bem atendidos por ela e gostam da escola. O que me preocupou
foi a falta de senso crítico. Não há congestionamento de carros na hora de
buscar os filhos no final do turno? Não falta laboratório de ciências?
A escola não
produz reflexão, apenas ensina a ordem, a disciplina. Isso é educação? Essa
escola forma cidadãos?
Uma vez
por mês viajo da cidade interiorana onde trabalho para passar um final de
semana na capital do meu estado. Em uma das viagens conversei com Marília (*), entre
15 e 17 anos, terminando o ensino médio, uma menina quem tem sonhos e estuda numa
bem conceituada escola pública da cidade. Como sempre, perguntei sobre a sua relação
com a escola e especialmente com a Matemática. Estava chateada. Era abril ou maio, não lembro bem a data, e a
classe já estava insuportável. A sua turma e o professor estavam em conflito.
Na primeira prova os alunos não se saíram bem e o professor os chamou de
irresponsáveis. Foi o suficiente para que a classe se tornasse apática,
contrariasse as ordens do professor, inclusive, brincando com o celular durante
a aula e o professor se desgastasse em “berros” para conseguir alguma atenção.
Que
situação mais carente de graça!
Márcio
(*) é Licenciado em Matemática e Mestre em Educação Matemática. Foi meu aluno
na licenciatura e antes de ingressar no mestrado foi coordenador de área nos
anos iniciais de uma escola publica. Conversávamos muito sobre educação. Um dia
ele estava decepcionado e disse que o seu trabalho era sem graça porque tinha
que fazer reuniões de estudos com as professoras, mas elas nunca estavam
dispostas. Tinha que visitar as salas aula, mas cada vez que assistia a uma
aula de alguma professora saía sem saber o que falar porque esta estava tão
longe do mínimo esperado que não sabia
por onde começar a fala.
Naquele
dia assistira a aula da professora Mercedes (*), professora não efetiva e cuja
convocação se repetia por muitos anos por influência da diretora que era sua
amiga. A aula, segundo ele, tinha sido pior do que sofrível porque a professora
estava "ensinando" geometria no quarto ano, mas gastou o tempo todo
copiando o livro no quadro com definições e figuras. Tudo o que tinha no livro
foi para o quadro e o aluno copiou. Nada mais aconteceu: nem explicação, nem
diálogo, nem exemplificações. "Foi uma aula cala a boca", disse ele.
Um dia ele me convidou, com a anuência da direção e coordenação, para uma fala
com algumas professoras que estavam com dificuldades para ensinar alguns
tópicos da Matemática. Aceitei o convite e no horário combinado estava lá com
duas ou três professoras. Conversamos, falei sobre o objetivo daqueles tópicos
estarem no currículo e fiz sugestões de abordagens. Mais tarde fiquei sabendo
que ele quase foi ele execrado por levar alguém de fora para lhes falar.
A escola não
é apenas carente de atração, é carente também de graça, daquela graça que dá sentido à vida. A escola é
hostil. Ha uma carência de sentido na escola, por isso ela é sem graça.
Malthus
(*) também foi meu aluno no curso de licenciatura. Não se identificava com os
meus discursos na disciplina de estágio. Queria ser engenheiro ou estudar Matemática
Aplicada ou Pura, mas sem opção fez licenciatura e se tornou professor da educação
básica.
Nós
falamos pouco porque nos encontramos pouco e porque a minha linha de raciocínio
não interessa a ele. Sou da Educação Matemática e ele ainda não se identificou
com ela. Mesmo assim de vez em quando nos falamos. Ele é coordenador de área
nos anos finais da educação básica de uma escola pública e eu sempre estou
visitando escolas. Nossos caminhos por vezes se cruzam e falamos sobre educação,
mesmo que esse não seja o seu foco. Não
faz muito ele disse: "professor, não sei quem está desmotivando quem, se é
o professor quem desmotiva o aluno ou é o aluno quem desmotiva o professor; o
que sei é que a sala de aula é um ambiente onde ninguém tem interesse: nem
professor e nem aluno".
Não
sabendo o que dizer, perguntei: por onde começar para romper esse círculo
vicioso?
Ele,
embora não usando exatamente essas palavras, disse que quando sugere alguma
atividade para o professor este pede que ele exemplifique em sua sala de aula.
Ele vai, mostra que a sua sugestão funciona e fica esperando que o professor se
prontifique a prosseguir, mas este diz: você poderia continuar vindo fazer isso
aqui? Os alunos gostaram tanto!
A escola
é sem graça, porque falta graça (engajamento, disposição) ao professor. O aluno
se adapta a essa realidade, reflete isso e reforça esse comportamento.
Paulo
Freire, em um diálogo com Papert (divulgado pelo YouTube), afirmou que escola, para se manter, vai se
reinventar.
Reinventar
a partir de onde? Como se reinventar se
ainda não se deu conta da sua condição? Normalmente, procuramos pelo caminho quando
nos sentimos perdidos, como a escola vai buscar caminhos se sente que está bem?.
Ficam as perguntas.
Antonio
Sales
Araranguá,
SC, 24 de dezembro de 2013.
(*) nomes
trocados para evitar identificação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário