Estava na sala de
fisioterapia. Enquanto o aparelho produzia uns “choques” no meu joelho eu ouvia
o desabafo de uma servidora pública que trabalhava na escola. Ela conversava
alto com a fisioterapeuta, procurando chamar a atenção de alguém, esperando que
alguém se interessasse pelo que tinha a dizer. Momentos depois ela sentou-se
perto de mim para também levar uns “choques” no pé. Como a fisioterapeuta se
afastou e eu estava em silêncio ela silenciou também. Rompi o silêncio e perguntei
se era professora. Disse-me que não. Exercia a função de administrativa, mas
estava indignada com o tratamento que certo aluno do 6º ano dava os
professores. Falou das ameaças que ele fazia aos professores, dos desacatos,
dos palavrões e dos xingamentos que proferia mesmo quando tratado com educação.
“Finalmente”, disse ela
com certo alivio na voz, “ele foi transferido para outra escola. Depois de
muitas ocorrências conseguiram a transferência dele”.
Voltei para o meu
silêncio. Nada tinha a lhe dizer.
Se não tinha o que
dizer, tinha muito para pensar e escrever.
Estamos brincando de
educar, pensei. Não se educa sendo permissivo e nem transferindo
responsabilidades. É lamentável que o problema de uma escola seja resolvido com
a transferência do mesmo para outra escola.
No entanto, esse é,
infelizmente, o caminho encontrado pelos
educadores para se livrar de um problema que denomino de doença social infectocontagiosa. Por que se recorre a esse
expediente covarde de transferir o
problema para outro? Por quê?
Porque não há aparato
político, técnico, científico e judiciário para ajudá-los. Às vezes nem mesmo
há vontade de resolver o problema porque encará-lo significa admiti-lo.
Para os administradores
públicos já está claro que no caso de uma doença física além do atendimento
primário em uma Unidade de Saúde de
Família ou atendimento de urgência em um
Posto de Pronto Atendimento é necessário um hospital equipado com
tecnologia moderna, ambulância para traslado equipada com paramédicos
treinados e pessoal cientificamente
preparado para atender os casos graves
que extrapolam o potencial de um atendimento
primário.
No caso dessa doença social caracterizada pelo
desrespeito de algumas crianças e vários
adolescentes para com os professores e outros adultos, aparentemente, nenhum
investimento é feito em treinar pessoas, equipar “hospitais” e preparar
o aparato judiciário para o enfrentamento do problema. Essas crianças e
adolescentes estão doentes e requerem tratamento especializado.
À escola cabe dar o atendimento primário, fazer
o trabalho preventivo, investir numa
“boa” relação com os pais, orientando-os, produzindo discussões e fornecendo
sugestões não simplistas. Professores e coordenadores precisam se preparar para
o diálogo com os pais.
Eles não podem ir além desse
passo. Não lhes é permitido pela sociedade exigir que os alunos tenham certos
comportamentos. Serão acusados de expor o aluno ao ridículo, de abuso de
autoridade ou extrapolar o seu papel. Não tendo o que fazer silenciam, sofrem
e, quando podem, transferem o problema para outra escola.
Ora, aqui está o
problema. Por que não transferir para uma
instituição educativa com agentes preparados para atendimento especializado?
Porque não há essa instituição. Mas, e por que não há essa instituição? Porque
há uma hipocrisia na administração pública que finge não estar vendo o
problema, uma hipocrisia no judiciário que finge cumprir o ECA (Estatuto da
Criança e do Adolescente) “respeitando” o não respeitável. Por que não respeitável?
Porque se não é respeitável
o direito de um motociclista pilotar sem capacete, ou um motorista dirigir sem
cinto de segurança, porque tal comportamento expõe a sua vida ao perigo, como
podemos achar que é respeitável o direito de uma criança ou adolescente
permanecer enfermo socialmente? É respeitável o seu direito de ser infrator?
Isso não expõe a sua vida, e a de outros, aoperigo?
No caso de uma
doença física o médico tem a liberdade para prescrever o remédio e esperar que
a equipe técnica cumpra o que está prescrito na receita. Isso é considerado importante para o bem do paciente
e da sociedade que alimenta a expectativa de recebê-lo de volta recuperado do mal que o acometeu e certa de
que ele teve o atendimento que merecia. Por que, no caso de doença social infectocontagiosa, o aparato judiciário não pode
prescrever medidas sócioeducativas que funcionem?
Fiz essa pergunta
porque tenho acompanhado casos de medidas socioeducativas em que a instituição
cidadã que se dispõe a colaborar com o judiciário não recebe nenhum apoio para
fazer o infrator cumprir o que foi determinado. Como resultado dessa ausência de
orientação e apoio ela prefere devolver o sujeito, transferir o problema, e
assim o faz.
Com essas transferências
o problema se agrava tornando-se crônico e, em muitos casos, incurável. Estamos
fazendo um cultivo de “estafilococos” resistentes a tratamento porque as
medidas tomadas não são efetivas. Não se faz um estudo sobre esses casos ou não
se leva em conta os estudos já realizados. Parece que estamos insistindo em
respeitar quem não quer ser respeitado.
Antes desse estágio de
atuação do judiciário, as “bactérias” mutantes criaram resistência
suficiente na escola e infectaram outros.
A escola demora encaminhar por não acreditar que o judiciário tenha proposta
melhor do que a sua. Muitos casos encaminhados voltam com a determinação da
promotoria de que o lugar do aluno é na
escola e é lá que ele deve permanecer sem levar em conta que foi lá que ele
adoeceu e transmite a “doença” aos outros. O stress provocado por ele adoece os profissionais, sem levar em
conta os casos de morte que já foram registrados. O stress provocado causa certo prazer no infrator (MATTJE, 2009;
HERE, 2009; VEJA, 2007) que se torna mais agressivo, ousado, e, ao mesmo tempo,
lhe produz mais irritação porque os estressados se tornam impacientes com ele.
Nesse contexto os demais alunos ficam tensos, instáveis (uns temerosos e outros
ousados), os pais ficam temerosos pelos seus filhos e ocorre a incoerência de
se devolver um doente ao lugar que o enfermou. Outros serão enfermados por ele
e quando encaminhados serão também devolvidos para enfermar outros.
Onde fica a direito que
a criança e o adolescente tem de aprender a respeitar? E o direito de exercer a
cidadania? Os doentes não são dignos
desse direito? Educar não é proteger? É possível educar sem exigir o
cumprimento de regras socialmente estabelecidas?
É possível romper com
esse círculo vicioso? Creio que sim. Aposto que se os Sindicatos de Professores
encampassem essa luta promovendo debates, denúncias, passeatas, audiências públicas e outras medidas que os
líderes politizados são capazes de fazer, alguma mudança começaria ocorrer.
Estou esperando para
ver acontecer essa mobilização. É hora da luta pelo respeito, pela seriedade e
pela paz. Isso não seria lutar por uma educação de qualidade?
Campo Grande 20 de
junho de 2012.
Antonio Sales
profesales@hotmail.com
Referências
HERE, Robert. Psicopatas no divã. Veja. Edição
2100, Ano 42, Número 13, 1º/4/2009 (Páginas amarelas). (O autor é psicólogo
canadense especialista em psicopatias)
MATTJE, Gilberto Dari. Tosco. Campo Grande, MS: Gráfica Alvorada, 2009.
VEJA. Revista Veja, Edição 1990, Ano 40 nº 1 de 10/01/2007,
p. 49. São Paulo: Editora Abril, 2007.