Em um dos meus textos falei que alguns professores apresentam ao aluno uma ciência morta ou matam-na ao apresentar. Sou professor de matemática e é o ensino dessa ciência que tomo como base para as minhas reflexões. Não sei como seria uma história viva, uma geografia viva, etc. Posso falar em matemática viva ou matemática morta. Para falar de matemática viva recorro a Bento de Jesus Caraça um matemático, humanista e político português e aos Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática (PCN) dos anos finais do ensino fundamental.
Antes de ir a Caraça e aos PCN permita-me recorrer à minhas costumeiras metáforas para explicitar o meu pensamento.
Em alguns momentos, isto é, circunstâncias ou até condições de vida basta-nos uma ciência ou uma arte morta mesmo. Se preciso apenas apertar um parafuso que, se não for apertado não causará, de imediato, grande transtornos, não preciso saber muita técnica, não preciso saber a força do aperto e basta-me um alicate. Não preciso nem mesmo saber porque apertei ou deixei de apertar o parafuso. Porém, se sou um mecânico que vou me responsabilizar pelos resultados do meu trabalho e que por vezes encontro parafusos soltos em posição pouco favorável preciso de algo mais do que alicate e saber dar voltas com a mão para uma certa direção. Preciso, além do conhecimento técnico, de ser capaz de pensar sobre o que vou fazer e até mesmo de explicar porque fiz ou justificar o preço que cobrei. Nesse caso, não me basta o conhecimento de uma ciência ou uma técnica morta. Aquela do tipo: faça assim.
Se quero penas tomar um chá, bastam-me algumas folhas que podem ser secas desde que tenham sabor agradável. No entanto, se sou um especialista em saúde e vou receitar o chá para alguém preciso me preocupar com algo mais do que com o sabor, preciso saber quais as possíveis reações que ele provocará no corpo humano. Preciso fazer associações.
Com essas metáforas quis apenas dizer que é possível que em certas circunstâncias uma ciência ou uma arte possa mesmo ser morta. Para quem não precisa pensar sobre, bastam algumas técnicas.
No dia dois de fevereiro de 2012 o professor e autor de livros didáticos de Matemática, Luiz Márcio Imenes, esteve em Nova Andradina, MS, realizando uma oficina com os professores da Rede Municipal. Quando ele expunha, em outras palavras e bem mais elaboradas, o estou tentando expor, uma jovem professora dos anos iniciais que estava ao meu lado confidenciou: “o noivo da minha colega é estudante de Engenharia Química e se sai muito bem nas provas de matemática. Interrogado, sobre essa sua facilidade, respondeu: eu não brigo com a matemática, faço o que o professor manda e tiro a nota”. Não conheço o espectro de atuação de um engenheiro químico, mas é possível que a especialidade que ele escolheu precise da matemática apenas como ferramenta para alguns cálculos que já estão padronizados. Nesse caso, para ele a matemática pode ser morta, pode ser aquela que já está na calculadora ou no Excel.
No âmbito da educação básica que não tem por objetivo preparar para determinado tipo de trabalho, onde precisamos preparar para pensar sobre o que faz, podemos apresentar uma ciência morta? E na licenciatura?
Mas o que é uma ciência morta? Vamos a Caraça (1989).
Esse pensador observou que se pode olhar para uma ciência como ela está posta nos livros, como um produto acabado. Algo pronto. Nesse caso, embora haja um todo harmonioso, ela é inerte e já sem vida para o estudante que se limita a contemplá-la como obra de arte. Algo lindo, mas que ele não tem participação na sua construção, não tem a pincelada dele. A ausência de contradições com que é apresentada (nos livros) esconde o trabalho árduo de construção sobre o qual os matemáticos se debruçaram durante meses ou anos em cada tema, em cada produção. Tem–se a impressão de que um gênio, saído da garrafa, abençoou o matemático e ele saiu produzindo espontaneamente toda aquela beleza que está posta ali.
Essa visão é, de alguma forma, desestimulante. Quando vejo uma obra de arte de um grande artista e não tenho a mínima ideia dos esboços que ele fez, do tempo que gastou para produzi-la, sinto-me tão pequeno, tão insignificante artisticamente, que perco a esperança de produzir um quadro como aquele.
Outra forma de ver uma ciência, segundo o mesmo autor, é como um trabalho progressivo em que é possível “acompanhar” os percalços de sua construção percebendo as dúvidas e hesitações em cada passo.
“Encarada assim, aparece-nos como um organismo vivo, impregnado de condição humana, com as suas forças e as suas fraquezas e subordinado às grandes necessidades do homem na sua luta pelo entendimento e pela libertação; aparece-nos, enfim, como um grande capítulo da vida humana social” diz Caraça (1989, p.xiii ).
O que Caraça quis dizer com isso? Penso que isso significa que os alunos devem ser colocados em posição de quem devem conjecturar, testar as conjecturas e descartá-las ou aprová-las. Devem ser informados, tanto quanto possível, das idas e vindas durante a produção de um teorema, e assim por diante. Suas tentativas devem ser estimuladas, certos erros tolerados e trabalhados pedagogicamente.
Se Matemática é produção humana alguém deve ter errado alguma vez na sua produção. Deve ter riscado muito papel para chegar à conclusão a que chegou.
Muitos professores reclamam que os alunos não têm estímulo. Quem teria estímulo para ficar repetindo o que já está pronto? Ficar tentando pisar em cima do rasto do outro é estimulante? Criança gosta de imitar e talvez seja por isso que as crianças, quando entram na escola, vibram com a matemática que está lá para memorizar e repetir. Mais tarde, quando já querem pensar, se tornam enfadadas com o que lhes é apresentado. Nem todas, é claro. Há quem goste de passar a vida toda copiando do quadro e tentando seguir o modelo.
Como mudar esse quadro, esse de apresentar a ciência morta? É preciso romper paradigmas. É preciso apostar.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática (PCN) veem com preocupação o fato de a História da Matemática não ser incluída nas aulas do ensino fundamental. Não se trata daquele recorte de história que alguns livros trazem no início ou final do capítulo. A história deve ser incluída no diálogo do professor com o aluno enquanto discutem um conceito. A perspectiva aqui é de um professor que estuda continuamente, um intelectual. Alguém que sabe mais do que repetir exercício. É possível? Creio que sim.
Consta ainda no documento citado (PCN) que:
Esta visão opõe-se àquela presente na maioria da sociedade e na escola que considera a Matemática como um corpo de conhecimento imutável e verdadeiro, que deve ser assimilado pelo aluno. A Matemática é uma ciência viva, não apenas no cotidiano dos cidadãos, mas também nas universidades e centros de pesquisas, onde se verifica, hoje, uma impressionante produção de novos conhecimentos que, a par de seu valor intrínseco, de natureza lógica, têm sido instrumentos úteis na solução de problemas científicos e tecnológicos da maior importância.
Em contrapartida, não se deve perder de vista os caracteres especulativo, estético não imediatamente pragmático do conhecimento matemático sem os quais se perde parte de sua natureza (BRASIL, 1998, p. 24, grifos nossos)
Que beleza há na matemática composta apenas de aplicação de fórmulas?
Continua o documento:
“ Fruto da criação e invenção humanas, a Matemática não evoluiu de forma linear e logicamente organizada. Desenvolveu-se com movimentos de idas e vindas, com rupturas de paradigmas” (BRASIL, 1998, p. 25)
Mas os PCN dizem ainda que:
O advento posterior de uma multiplicidade de sistemas matemáticos e teorias Matemáticas evidenciou, por outro lado, que não há uma via única ligando a Matemática e o mundo físico. Os sistemas axiomáticos euclidiano e hiperbólico na Geometria, equivalentes sob o ponto de vista da consistência lógica, são dois possíveis modelos da realidade física (BRASIL, 1998, p.25 )
Este último parágrafo expressa uma verdade pouco percebida. A verdade que apresentamos não é única, nem mesmo na Matemática. É preciso ter outro olhar.
Deixo uma questão que embora não diretamente relacionada ao texto suponho que mereça reflexão.
Será que o professor que ainda “passa matéria no quadro” para os alunos copiarem numa época em que os livros abundam, a cópia reprográfica e o Google estão disponíveis em toda parte, não está contribuindo para a “morte” da ciência?
Nova Andradina, 04 de fevereiro de 2012.
Antonio Sales profesales@hotmail.com
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Matemática. Brasília: MEC/SEF, 1998.
CARAÇA, Bento de Jesus. Conceitos fundamentais da matemática. 9. ed.
Lisboa: Sá da Costa, 1989.