Este texto é uma
reminiscência do primeiro conselho de classe que participei na Rede Pública de
Ensino do Estado de Mato Grosso do Sul.
Recém-formado acabava
de ingressar na rede pública. Minha experiência anterior estava ligada ao outro tipo de trabalho e,
nos anos mais próximos a esse episódio, como professor leigo em uma escola
rural multisseriada. Não sabia o que esperavam de mim nesse conselho e fui de
alma aberta. Uma alma aberta, diziam os antigos, pode ser vítima de inimigos
invisíveis, por vezes, fatais.
Na infância haviam me
ensinado um ritual para fechar a alma ao cruzar uma cerca de arame farpado. É
preciso se proteger, diziam os amigos crédulos. O inimigo ataca pelas costas,
diziam, e quando você se abaixa para cruzar uma cerca de arame sua alma fica
aberta. Como nunca entendi qual o perigo
que se corria ao cruzar uma cerca de
arame em um dia normal e se do outro lado me esperava um amigo, nunca pratiquei
o tal ritual.
Foi desse modo que me apresentei
àquela reunião do conselho: desprotegido. Minha alma estava aberta.
Começou a reunião com
todos os participantes sentados em forma de um círculo. Sentei-me próximo à
coordenadora, e à sua esquerda. Sorte minha porque ela começou a conversa pelo
professor que estava à sua direita. Se começasse por mim, não saberia o que
dizer.
A sua pergunta, após
citar o nome do aluno número um no diário de classe daquela turma, foi: como é
esse aluno?
Se tivesse começado por
mim eu teria dito: é loiro, baixo, usa óculos, etc. Mas, descobri logo que não era
isso que ela queria saber e o professor foi direto ao ponto: “desinteressado,
não estuda, não faz tarefas, é cínico e falta muito”. A coordenadora anotou
tudo em seu caderno. Não sei para que, mas sei que anotou.
A pergunta foi para o
segundo professor. Resposta, para não se repetitivo: “não suporto esse aluno.
Já reclamei deles várias vezes e ninguém fez nada. Não está aprendendo nada”.
Os demais desfiaram um
rosário semelhante. Enquanto isso eu, de alma aberta, me contaminava pelos
discursos e encontrei uma explicação para nota quatro que ele obtivera comigo. Também
preparei o meu rosário com umas dez pedras. Falei mal do aluno, justifiquei a
minha incompetência e fiquei feliz. Mas, a felicidade durou pouco.
Próxima rodada, as
notas do referido aluno. Primeiro professor: “oito”. Segundo professor: “sete e
meio”. Terceiro professor: “comigo ele não foi muito bem, mas tirou seis e
meio”. Quarto professor: “comigo tirou nove”.
Fiquei perguntando o que era
aquilo que presenciava. Minha alma fora profundamente afetada e demorei proceder
fechamento blindandagem contra esse discurso. Naquela primeira reunião fui
me anulando, sentindo-me um idiota em ter falado mal do aluno e ter registrado
nota baixa para ele. Minha alma aberta fora influenciada, fora atacada pelo
dardo inflamado do inimigo invisível: a mediocridade, a falta de bom senso.
Fiquei perdido durante muitos anos nos
conselhos de classe. Ora me calava, ora falava mal do aluno, ora anunciava a nota baixa,
ora alterava a nota durante o processo. Os conselhos se repetiam sempre
da mesma forma. Aqui e acolá um professor coerente, mas, em sua maioria, sempre
o mesmo comportamento.
Não conseguia entender esse
discurso. Se o aluno tinha boa nota por mérito próprio como podia ser tão
desqualificado? Se a nota lhe foi concedida sem mérito o melhor que o professor
poderia fazer era ficar calado, pois manda o bom senso que quem comete um crime
não deve sair se vangloriando do que fez.
Perguntas que me
inquietavam desde aquela reunião: o que os professores estavam dizendo? Havia
coerência na fala deles? O que falta ao professor: ética, moral, bom senso,
intelectualidade, senso do ridículo?
Hoje cerca de 30 anos
depois, e há 18 anos ligado ao curso superior, não sei se a situação melhorou.
Sei que no curso superior o professor não me parece mais dotado de bom senso do
que o professor da educação básica. A mesma “ingenuidade” e contradição permeia
o discurso de todos: havendo bom ensino há aprendizagem, o aluno não aprende
porque não presta atenção, bom conhecimento da disciplina é condição suficiente
para que seja um bom professor. Por aí vai o discurso tão desprovido de sentido que nem eles percebem as
contradições internas.
A qualidade baixa da
educação recebe dos envolvidos no processo as mais disparatadas explicações:
falta de um bom planejamento, a família não apoia, o sistema não colabora,
falta interesse ao aluno.
Planejar bem o quê se a
aula deve ser um constante improviso? Tudo bem que se faça previsão de
conteúdos e estratégias, mas cumpri-los é outra coisa. Sempre faço diferente do
que planejo, porque as circunstâncias assim o exigem.
A família não apoia
porque não acredita na educação, não acredita no bom senso do professor. Faça o
professor um jogo limpo com a família para ver se não há cooperação! Mostre
algo mais do que discurso de
culpabilidade e, por certo, contará com o apoio de muitos. Raros são os pais
que não querem o bem dos filhos.
O sistema? Quem é o
sistema? Um ser imaginário impalpável, que se torna visível e palpável na
figura do professor. O sistema é o que o professor mostra. O professor é um dos braços do sistema. E por meio desses braços
que o sistema age, se torna visível,
cumpre o seu papel. Se ele não funciona a contento é porque seus membros estão deficitários.
Falta interesse ao
aluno? Falta interesse também a nós, professores. Quem gosta de participar de
palestras desprovidas de sentido? Que comparece de bom gosto às reuniões de
capacitação?
Nossa profissão é uma profissão
de interações humanas. Nela se torna evidente o conflito de interesses e é
preciso aprender a administrar esse conflito.
Antonio Sales
Campo Grande, 04 de
maio de 2014.
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