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sábado, 10 de maio de 2014

INCOERÊNCIAS NO DISCURSO



Este texto é uma reminiscência do primeiro conselho de classe que participei na Rede Pública de Ensino do Estado de Mato Grosso do Sul.
Recém-formado acabava de ingressar na rede pública. Minha experiência anterior  estava ligada ao outro tipo de trabalho e, nos anos mais próximos a esse episódio, como professor leigo em uma escola rural multisseriada. Não sabia o que esperavam de mim nesse conselho e fui de alma aberta. Uma alma aberta, diziam os antigos, pode ser vítima de inimigos invisíveis, por vezes, fatais.
Na infância haviam me ensinado um ritual para fechar a alma ao cruzar uma cerca de arame farpado. É preciso se proteger, diziam os amigos crédulos. O inimigo ataca pelas costas, diziam, e quando você se abaixa para cruzar uma cerca de arame sua alma fica aberta.  Como nunca entendi qual o perigo que se corria ao cruzar uma cerca  de arame em um dia normal e se do outro lado me esperava um amigo, nunca pratiquei o tal ritual.
Foi desse modo que me apresentei àquela reunião do conselho: desprotegido. Minha alma estava aberta.
Começou a reunião com todos os participantes sentados em forma de um círculo. Sentei-me próximo à coordenadora, e à sua esquerda. Sorte minha porque ela começou a conversa pelo professor que estava à sua direita. Se começasse por mim, não saberia o que dizer.
A sua pergunta, após citar o nome do aluno número um no diário de classe daquela turma, foi: como é esse aluno?
Se tivesse começado por mim eu teria dito: é loiro, baixo, usa óculos, etc. Mas, descobri logo que não era isso que ela queria saber e o professor foi direto ao ponto: “desinteressado, não estuda, não faz tarefas, é cínico e falta muito”. A coordenadora anotou tudo em seu caderno. Não sei para que, mas sei que anotou.
A pergunta foi para o segundo professor. Resposta, para não se repetitivo: “não suporto esse aluno. Já reclamei deles várias vezes e ninguém fez nada. Não está aprendendo nada”.
Os demais desfiaram um rosário semelhante. Enquanto isso eu, de alma aberta, me contaminava pelos discursos e encontrei uma explicação para nota  quatro que ele obtivera comigo. Também preparei o meu rosário com umas dez pedras. Falei mal do aluno, justifiquei a minha incompetência e fiquei feliz. Mas, a felicidade durou pouco.
Próxima rodada, as notas do referido aluno. Primeiro professor: “oito”. Segundo professor: “sete e meio”. Terceiro professor: “comigo ele não foi muito bem, mas tirou seis e meio”. Quarto professor: “comigo tirou nove”.
Fiquei perguntando o que era aquilo que presenciava. Minha alma fora profundamente afetada e demorei proceder fechamento blindandagem contra esse discurso. Naquela primeira reunião fui me anulando, sentindo-me um idiota em ter falado mal do aluno e ter registrado nota baixa para ele. Minha alma aberta fora influenciada, fora atacada pelo dardo inflamado do inimigo invisível: a mediocridade, a falta de bom senso. Fiquei perdido durante  muitos anos nos conselhos de classe. Ora me calava, ora falava mal do aluno, ora anunciava  a nota baixa,  ora alterava a nota durante o processo. Os conselhos se repetiam sempre da mesma forma. Aqui e acolá um professor coerente, mas, em sua maioria, sempre o mesmo comportamento.
Não conseguia entender esse discurso. Se o aluno tinha boa nota por mérito próprio como podia ser tão desqualificado? Se a nota lhe foi concedida sem mérito o melhor que o professor poderia fazer era ficar calado, pois manda o bom senso que quem comete um crime não deve sair se vangloriando do que fez.
Perguntas que me inquietavam desde aquela reunião: o que os professores estavam dizendo? Havia coerência na fala deles? O que falta ao professor: ética, moral, bom senso, intelectualidade, senso do ridículo?
Hoje cerca de 30 anos depois, e há 18 anos ligado ao curso superior, não sei se a situação melhorou. Sei que no curso superior o professor não me parece mais dotado de bom senso do que o professor da educação básica. A mesma “ingenuidade” e contradição permeia o discurso de todos: havendo bom ensino há aprendizagem, o aluno não aprende porque não presta atenção, bom conhecimento da disciplina é condição suficiente para que seja um bom professor. Por aí vai o discurso tão desprovido  de sentido que nem eles percebem as contradições internas.
A qualidade baixa da educação recebe dos envolvidos no processo as mais disparatadas explicações: falta de um bom planejamento, a família não apoia, o sistema não colabora, falta interesse ao aluno.
Planejar bem o quê se a aula deve ser um constante improviso? Tudo bem que se faça previsão de conteúdos e estratégias, mas cumpri-los é outra coisa. Sempre faço diferente do que planejo, porque as circunstâncias assim o exigem.
A família não apoia porque não acredita na educação, não acredita no bom senso do professor. Faça o professor um jogo limpo com a família para ver se não há cooperação! Mostre algo mais do que  discurso de culpabilidade e, por certo, contará com o apoio de muitos. Raros são os pais que não querem o bem dos filhos.
O sistema? Quem é o sistema? Um ser imaginário impalpável, que se torna visível e palpável na figura do professor. O sistema é o que o professor mostra. O  professor é um dos  braços do sistema. E por meio desses braços que o sistema  age, se torna visível, cumpre o seu papel. Se ele não funciona a contento é porque seus membros  estão deficitários.
Falta interesse ao aluno? Falta interesse também a nós, professores. Quem gosta de participar de palestras desprovidas de sentido? Que comparece de bom gosto às reuniões de capacitação?
Nossa profissão é uma profissão de interações humanas. Nela se torna evidente o conflito de interesses e é preciso aprender a administrar esse conflito.
Antonio Sales
Campo Grande, 04 de maio de 2014.


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