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domingo, 23 de fevereiro de 2014

SALA DE AULA: CEMITÉRIO DO PROFESSOR?


Como professor em um curso de licenciatura, extensionista da Universidade e  tendo já coordenado  dezenas de encontros com professores da Educação Básica, de vez em quando,  surpreendo os meus alunos e os professores  com a proposição de que devem “sair”  da sala de aula. Explico que este sair não é abandonar a carreira de professor, mas é ir  além do que está sendo posto em sala de aula.
Penso que o professor deve participar de Conselhos Municipais (Meio Ambiente, Saúde, Drogas, Ações Afirmativas, etc.), mesmo que seja para ter apenas direito a voz, participar mais de encontros e grupos de estudos na Universidade, ler sobre relações humanas, participar de campanhas, de palestras a pais, etc.
Quando falo isso eles me olham assustados como que me dizendo que isso é tudo bobagem, impossível para eles, ou que sou um alienígena. Como os jovens dizem na gíria criada por certa música, eles acham que estou “fora da casinha”.
Por outro lado fico pensando o que fazer para despertem para outras perspectivas. Até quando o professor vai depender de “pacotes vindos de cima” para produzir ou para desculpar-se?
Qualquer insistência da minha parte parece reforçar o meu caráter de alienígena e fazer mal ao professor. O diálogo “motivacional” não flui e muitas vezes sinto uma ponta de frustração após essas conversas. Sinto a minha impotência para mobilizar os professores e isso me angustia um pouco. Fico sem entender e às vezes cedo à pressão  passo a sentir-me como estando mesmo “fora da casinha”. Para não me dar por vencido resolvi fazer terapia e busco ajuda em textos sobre terapia. Ultimamente meu terapeuta é Irvin Yalon, através dos seus livros.
Foi num desses livros que li recentemente uma estória que me ajudou a entender esse professor que não consegue “sair” da sala de aula e também contribuiu para dar um novo rumo à minha vida profissional.
É a estória de um casal. O marido percebeu que a esposa estava cada vez mais cabisbaixa, afundando-se cada vez mais na depressão porque não conseguia se recuperar do luto de um filho. Os esforços do marido para que procurasse terapia foram em vão. Já passava de um ano sem melhoras e sem esforço da parte dela para procurar saídas. As conversas em casa não ajudavam e até pioravam a situação. Desesperado ele decidiu “sondar” o comportamento da esposa para ver se havia algo mais que a atormentava.
Demorou mais algum tempo para perceber um hábito estranho que ela adquirira: todas as manhãs subia a escada até o andar de cima da casa, permanecia por algum tempo, aparentemente sem nada fazer, e descia ainda mais desprovida de estímulos.
Insistiu em saber o que se passava lá em cima e até em subir com ela, mas ela se recusava em permitir apenas dizendo que ele não entenderia nada. Após algum tempo de insistência ela lhe disse: “suba, vá até à janela X e olhe. Duvido que vá entender alguma coisa”.
Ele subiu, olhou e viu a cidade, viu o movimento e viu, ao longe, o cemitério onde estava a sepultura do filho. Parecia um pequeno quadro emoldurado pela cidade cheia de vida. Sentiu saudades do filho, lembrou-se das diversas vezes que sentira uma dor aguda no peito pela sua perda, mas lembrou-se também que pelo amor à vida, pela responsabilidade pelo bem-estar da família, pelo compromisso com o trabalho, conseguira superar tudo aquilo. Teve pena da esposa que passara com ele aquela dor, mas não entendeu porque ainda não superara tudo aquilo.
Voltando para o andar de baixo deu-se o seguinte diálogo entre o dois:
- Olhou pela janela?
- Sim, olhei!
- O que viu?
- Vi a cidade que está muito bonita, vi o movimento e vi o cemitério onde está o nosso filho. O cemitério está tão longe que perece um pequeno quadro e parece difícil acreditar que caiba nele a sepultura do nosso filho.
- Eu não disse que não entenderia nada? Confirmou agora que é um homem insensível à dor! É por isso que não consegue me ajudar, não consegue me compreender. A cidade não é bonita e o cemitério não está longe. Está tão perto que quase vejo a sepultura do nosso filho que você depositou lá e logo esqueceu.  Você traiu os nossos sentimentos familiares. Eu só vejo o cemitério daquela janela. Veja a sepultura onde está depositada a minha vida, onde depositei minhas últimas esperanças, onde estão os meus sonhos.
Ele entendeu. Para ele, o cemitério era um pequeno quadro emoldurado pela cidade. Para ela, o cemitério era tudo o que existia e podia ser visto daquela janela. Era maior do que a cidade, era o depósito dos seus sonhos.
Entendi o professor.
A sala de aula é o seu cemitério. Ali estão os seus sonhos frustrados. Ali está a sua vida sem perspectiva. Ali está o futuro que ele nunca sonhou. Ali está a razão, sem razão, da sua vida.
Sem outra opção ele cursou licenciatura e sem preparo foi para sala de aula. Foi pensando encontrar alunos ávidos por aprender (diferentes dele que não era e não é tão aplicado assim), gestores que dariam conta de por “ordem” na escola (diferentes dele que não põe ordem na própria sala), pais solícitos que viriam à escola todos os dias reprimir o comportamento dos filhos (diferentes deles que não dá conta de  reprimir o comportamento do seu filho), pessoas que o tratassem com respeito (diferentes dele que nem sempre se mostra tão respeitoso).
O sonho do professor, de ser visto como intelectual, não se cristalizou porque a sala de aula ao revelar as suas fragilidades sepultou esse sonho. O sonho do professor de ser olhado com admiração por todos os alunos não se cristalizou porque alguns detestam a sua aula. O sonho de ser visto como autoridade não se cristalizou porque muitos alunos o desafiam frequentemente.
Dessa forma, ao entrar na sala de aula o seus sonhos foram sepultados; na escola, a sua vida perdeu o sentido e o “cemitério” tomou conta da “janela”.
Antonio Sales

Campo Grande, 16 de janeiro de 2014.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

ACORDA PROFESSOR!



Belisco-me neste  instante. Tento perceber-me. Meus pensamentos divagam para longe em busca de um aluno. Tento encontra-lo longe da sala de aula onde estou. Os quase 40 que estão diante de mim me entediam. Quero esse aluno que não está presente e que possivelmente exista apenas na minha imaginação.
Os alunos reais me entediam. Eles são medíocres (os alunos ou eu?), sem bons costumes, desinteressados, irritantes, falam alto o tempo todo, falam sempre as mesmas coisas e me lembram da sala de professores: aquele “converseiro” sobre tudo e sobre nada, reclamações mil vezes repetidas, nenhuma proposta, compra e venda de bijuterias, risadas desemedidas.
Tenho horror a esses alunos reais!  Não me acrescentam nada. Querem aprender cada vez menos e futricam um ao outro constantemente. Ficam irritados por qualquer coisa que o outro fala, não sabem conviver com o “não”, não sabem o que é silêncio e são agressivos. Não os suporto.
Nesse momento "acordo". Tenho um lampejo de lucidez e começo a me perguntar: por que sou professor? Por que eles  estão ali, exatamente na minha sala de aula? Por que procuro esse aluno hipotético?
A letargia me abandonou por uns instantes. A lucidez parece ter aparecido, ainda que por pouco tempo. Reorganizo nesse instante os meus pensamentos e percebo que:  os alunos reais que tenho são desinteressados porque a escola é sem graça, o professor está  sem vitalidade, vivendo em devaneios, sonhando com o irreal e fugindo da própria realidade. Ele mesmo (o professor) não acredita no que faz, não sabe por que está ali naquele momento e porque se fez professor.
Se o aluno fosse interessado ele ainda precisaria de mim?  Com essa fonte inesgotável de informações à sua disposição (Google, You Tube, bibliotecas) ele ainda me procuraria? Talvez, em alguns momentos, sim, mas o tempo todo não. Estou ali exatamente para atender o aluno desinteressado e tentar tira-lo da letargia.
Tenho consciência disso? Naquele momento, sim. Via de regra, não.
Sou como um terapeuta que se irrita quando o paciente chega ao consultório. O paciente com problemas traz à tona a minha própria fragilidade. Eu não quero ser frágil, não quero que ninguém perceba que em alguns momentos não sei o que fazer. Não quero ser lembrado de que há problemas a serem resolvidos. É por isso que devaneio o tempo todo.
 Por que nunca pensei nisso? Quando voltarei a pensar nisso outra vez?
Por que sou professor? Por que a sociedade me contratou para isso?
A escola existe para suprir (em parte) aquilo que a família não deu conta de proporcionar. O professor existe para reforçar valores sociais de tolerância, de respeito, de solidariedade, de compromisso. O professor existe para defender a cultura, dar exemplo de leitura,  exemplificar  o diálogo.
Nesse momento me belisco. Estou acordado ou sonhando? Por que ainda não entendi essas coisas? Que professor sou eu? Porque procuro esse aluno hipotético?
Esse pequeno momento de lucidez mostrou-me que estou criando esse aluno, nesse momento, forçando-o a existir para satisfazer as minhas  expectativas de um aluno ideal. Talvez esteja à procura do aluno que eu nunca fui. Quero compensar o meu passado de estudante comum ou mesmo medíocre. Quero compensar o meu ser professor sem sucesso, sem criatividade, rotineiro. Preciso de alguém que não exponha as minhas fragilidades, que não me desafie, que tire notas para que o meu sonho de ser reconhecido como bom professor se realize.
Finda o dia. O sol se põe. A nostalgia da tarde me domina, um torpor parece invadir o meu ser. Voltarei a ser o que era? A lucidez me abandonará outra vez? As “trevas noturnas” da minha existência profissional tornarão a me envolver? Quando direi novamente a mim mesmo: “acorda professor!”?
Antonio Sales
Campo Grande, 07 de fevereiro de 2014.