Como professor em um
curso de licenciatura, extensionista da Universidade e tendo já coordenado dezenas de encontros com professores da
Educação Básica, de vez em quando,
surpreendo os meus alunos e os professores com a proposição de que devem “sair” da sala de aula. Explico que este sair não é
abandonar a carreira de professor, mas é ir
além do que está sendo posto em sala de aula.
Penso que o professor
deve participar de Conselhos Municipais (Meio Ambiente, Saúde, Drogas, Ações
Afirmativas, etc.), mesmo que seja para ter apenas direito a voz, participar
mais de encontros e grupos de estudos na Universidade, ler sobre relações
humanas, participar de campanhas, de palestras a pais, etc.
Quando falo isso eles
me olham assustados como que me dizendo que isso é tudo bobagem, impossível
para eles, ou que sou um alienígena. Como os jovens dizem na gíria criada por
certa música, eles acham que estou “fora da casinha”.
Por outro lado fico
pensando o que fazer para despertem para outras perspectivas. Até quando o
professor vai depender de “pacotes vindos de cima” para produzir ou para
desculpar-se?
Qualquer insistência da
minha parte parece reforçar o meu caráter de alienígena e fazer mal ao
professor. O diálogo “motivacional” não flui e muitas vezes sinto uma ponta de
frustração após essas conversas. Sinto a minha impotência para mobilizar os
professores e isso me angustia um pouco. Fico sem entender e às vezes cedo à
pressão passo a sentir-me como estando mesmo
“fora da casinha”. Para não me dar por vencido resolvi fazer terapia e busco
ajuda em textos sobre terapia. Ultimamente meu terapeuta é Irvin Yalon, através
dos seus livros.
Foi num desses livros
que li recentemente uma estória que me ajudou a entender esse professor que não
consegue “sair” da sala de aula e também contribuiu para dar um novo rumo à
minha vida profissional.
É a estória de um
casal. O marido percebeu que a esposa estava cada vez mais cabisbaixa,
afundando-se cada vez mais na depressão porque não conseguia se recuperar do luto
de um filho. Os esforços do marido para que procurasse terapia foram em vão. Já
passava de um ano sem melhoras e sem esforço da parte dela para procurar
saídas. As conversas em casa não ajudavam e até pioravam a situação.
Desesperado ele decidiu “sondar” o comportamento da esposa para ver se havia
algo mais que a atormentava.
Demorou mais algum
tempo para perceber um hábito estranho que ela adquirira: todas as manhãs subia
a escada até o andar de cima da casa, permanecia por algum tempo, aparentemente
sem nada fazer, e descia ainda mais desprovida de estímulos.
Insistiu em saber o que
se passava lá em cima e até em subir com ela, mas ela se recusava em permitir
apenas dizendo que ele não entenderia nada. Após algum tempo de insistência ela
lhe disse: “suba, vá até à janela X e olhe. Duvido que vá entender alguma
coisa”.
Ele subiu, olhou e viu
a cidade, viu o movimento e viu, ao longe, o cemitério onde estava a sepultura
do filho. Parecia um pequeno quadro emoldurado pela cidade cheia de vida.
Sentiu saudades do filho, lembrou-se das diversas vezes que sentira uma dor
aguda no peito pela sua perda, mas lembrou-se também que pelo amor à vida, pela
responsabilidade pelo bem-estar da família, pelo compromisso com o trabalho,
conseguira superar tudo aquilo. Teve pena da esposa que passara com ele aquela
dor, mas não entendeu porque ainda não superara tudo aquilo.
Voltando para o andar
de baixo deu-se o seguinte diálogo entre o dois:
- Olhou pela janela?
- Sim, olhei!
- O que viu?
- Vi a cidade que está
muito bonita, vi o movimento e vi o cemitério onde está o nosso filho. O
cemitério está tão longe que perece um pequeno quadro e parece difícil
acreditar que caiba nele a sepultura do nosso filho.
- Eu não disse que não
entenderia nada? Confirmou agora que é um homem insensível à dor! É por isso
que não consegue me ajudar, não consegue me compreender. A cidade não é bonita
e o cemitério não está longe. Está tão perto que quase vejo a sepultura do
nosso filho que você depositou lá e logo esqueceu. Você traiu os nossos sentimentos familiares.
Eu só vejo o cemitério daquela janela. Veja a sepultura onde está depositada a
minha vida, onde depositei minhas últimas esperanças, onde estão os meus
sonhos.
Ele entendeu. Para ele,
o cemitério era um pequeno quadro emoldurado pela cidade. Para ela, o cemitério
era tudo o que existia e podia ser visto daquela janela. Era maior do que a
cidade, era o depósito dos seus sonhos.
Entendi o professor.
A sala de aula é o seu
cemitério. Ali estão os seus sonhos frustrados. Ali está a sua vida sem
perspectiva. Ali está o futuro que ele nunca sonhou. Ali está a razão, sem
razão, da sua vida.
Sem outra opção ele
cursou licenciatura e sem preparo foi para sala de aula. Foi pensando encontrar
alunos ávidos por aprender (diferentes dele que não era e não é tão aplicado
assim), gestores que dariam conta de por “ordem” na escola (diferentes dele que
não põe ordem na própria sala), pais solícitos que viriam à escola todos os dias
reprimir o comportamento dos filhos (diferentes deles que não dá conta de reprimir o comportamento do seu filho),
pessoas que o tratassem com respeito (diferentes dele que nem sempre se mostra
tão respeitoso).
O sonho do professor,
de ser visto como intelectual, não se cristalizou porque a sala de aula ao
revelar as suas fragilidades sepultou esse sonho. O sonho do professor de ser
olhado com admiração por todos os alunos não se cristalizou porque alguns
detestam a sua aula. O sonho de ser visto como autoridade não se cristalizou
porque muitos alunos o desafiam frequentemente.
Dessa forma, ao entrar
na sala de aula o seus sonhos foram sepultados; na escola, a sua vida perdeu o
sentido e o “cemitério” tomou conta da “janela”.
Antonio Sales
Campo Grande, 16 de
janeiro de 2014.