Penso que o debate sobre as questões éticas na atividade docente deve incluir, entre outros fatores, questões relativas a:
1. O desaforamento
No Direito, desaforamento tem o sentido de mudar o processo de Comarca, deslocar o julgamento para outro tribunal. Nesse caso, entende-se que desaforar significa tirar do lugar (des-aforar, tirar do foro (lugar)).
Embora com a mesma raiz da palavra desaforar o desaforamento diminui aquela carga pejorativa que a palavra carrega. Desaforar, em seu sentido pejorativo, é desestruturar o outro, tirar-lhe razão através da agressão, fazê-lo sentir-se fora do lugar. Mas ao usar desaforamento estamos admitindo que não é só agredindo pessoalmente que se tira o outro do lugar. Há outras formas de desaforar (tirar do lugar) que não seja o confronto direto e desestruturante.
Ao longo do tempo o homem (gênero masculino) idealizou o ser humano como sendo capaz para a guerra, para a caça, etc. Como a mulher, que nessa época tinha por função principal a procriação, passava a maior tempo grávida ela não tinha habilidade para caçar e guerrear. Ela era a guardiã da vida em sua essência e o homem o guardião dos bens (materiais e imateriais) e da vida em ação. Essa função da mulher era subestimada e desaforada, isto é, ela era tirada da categoria de ser humano. Era classificada como sub-humana. Uma subespécie. Esse era o desaforamento dela: classificada como inferior em todos os sentidos (fora dos padrões da espécie).
Na educação onde ocorre o desaforamento?
Quando o professor diz que o aluno chegou naquela série sem saber nada, o que ele quer dizer? Que o aluno está fora de lugar, devia estar em outra série. Devia estar numa série que não existe mais porque os seus pares foram promovidos ou se dispersaram em outras turmas.
O professor idealiza um aluno que não tenha dificuldades para aprender, e quando este não aprende então é porque não quer estudar. Isto é, devia estar fazendo outra coisa já que não quer aprender. No passado, não muito distante, se esse aluno com dificuldades fosse uma mulher logo lhe diriam: “devia estar na cozinha”. Em outras palavras: se não aprende o seu lugar não é aqui. Imagine um médico dizendo para um paciente: “é, está difícil curar você, então procure alguém que saiba menos do que eu; um lugar para quem não tem cura.”
Nessa perspectiva, o lugar do aluno com dificuldades não é na escola (ele está fora dos padrões da escola). Ele deve procurar ajuda com quem sabe menos.
Consegue se lembra de ter ouvido frases semelhantes?
2. Estranhamento
O desaforamento, na educação, tem relação direta com o estranhamento.
Se adotarmos a perspectiva da Ciência da História o estranhamento está articulado com dois fatores (TUMOLO, ?):
2.1Estranhar o produto do seu trabalho.
Por exemplo: um marceneiro produz um móvel e depois admite que não tem o direito de usá-lo. (Não é para ele que é pobre, por exemplo). Ele estranha o seu produto ou o seu produto é estranho para ele.
Nós, professores universitários, estranhamos o nosso produto. Na faculdade produzimos professores e depois dizemos que os alunos formados por esses professores são mal preparados.
Dá a impressão que não temos nada com isso que ocorre na educação, com esse propalado fracasso.
Esse professor que formamos continua repetindo essa visão medíocre de que ele não faz parte do sistema. Parece que o aluno nunca passa pelas “mãos” dele.
2.2 Alienação.
É o sentir-se fora do lugar. Não perceber em que lugar está.
Alguém chega ao depósito de gás, por exemplo, e reclama que o local cheira a gás.
Sente que há algo fora do lugar, mas esse algo nunca é ele. Não é ele, que não gosta de gás, que não devia ter ido lá, é o gás que não devia estar lá.
Na educação, como se manifesta a alienação?
O professor de educação básica se forma em uma universidade de estilo tradicional que prioriza a racionalidade técnica. Definição/demonstração/exercício ou definição/ exercício. Quando vai para a escola fundamental quer aplicar o mesmo método com o aluno de lá. Está alienado. Esta dando aula na educação básica pensando que é na universidade. Não percebeu que ele é quem está fora do lugar.
Quando estranha o lugar, o professor desafora o aluno.
Tem pessoas que fizeram doutorado na UNICAMP e vem dar aulas para um aluno que só pode estudar à noite e quer cumprir o programa da UNICAMP que é um curso diurno, etc. Ele está alienado. Não sabe onde está. Isso leva ao desaforamento. É o aluno que está fora de lugar e não ele.
Esses exemplos de estranhamento e alienação nos leva a pensar no caso hipotético de um médico que, ao fazer o seu relatório de trabalho, relata que não teve muito sucesso no trabalho porque se apresentaram a ele somente pacientes com problemas de saúde.
Evidentemente que esse médico poderá reclamar do excesso de trabalho e das filhas intermináveis, mas nunca de atender doentes.
As filas intermináveis são um indicativo de falta de saneamento básico, precário atendimento de saúde e outras deficiências mais que devem ser denunciadas. As filas podem ser a medida da deficiência na atenção do poder público. Por outro lado, se o médico ficar somente no consultório receitando remédios (julgar que ali é seu único espaço) pouco contribuirá para melhorar a qualidade ainda que haja investimentos na área. E se ele se assumir educador, trabalhar em equipe e unir esforços o que poderá acontecer? Será que os investimentos serão potencializados?
Na educação, o que denunciar:
a) Um aluno que não sabe? Aqui há que se perguntar ainda: E o que ele deve chegar sabendo? Esse “pré-requisito”, estipulado por mim, é essencial? É consenso de quem? É importante para que e para quem?
b) Um baixo IDEB? Há também outras perguntas aqui: Qual o objetivo da “Prova Brasil”? E do SAEB? E do ENADE? As notas obtidas nessas provas são indicativas de que?
Um professor que se limita a dar aulas e criticar o que existe contribuirá para melhorar o sistema? Como?
E se ele sair do “consultório” e começar a fazer projetos alternativos (mesmo que pequenos) ampliará a sua contribuição ou simplesmente aumentará a sua carga de trabalho? E se ele se assumir educador, trabalhar em equipe e unir esforços o que poderá acontecer? Será que os investimentos serão potencializados?
O estranhamento é um obstáculo ao desenvolvimento das potencialidades humanas.
3. Mediação de Conflitos
Hoje qualquer profissão requer preparo para a mediação e conflitos. Especialmente as profissões acadêmicas voltadas para as relações sociais.
Segundo Nazareth (?) Vivemos numa época em que o intercâmbio entre as pessoas e nações e o manejo das diferenças estão na ordem do dia. A característica principal desta época é o método do diálogo, isto é, a mediação.
O êxito dessa prática tem aliviado tribunais e evitados desgastes pessoais.
Uma definição de mediação é:
“um método de condução de conflitos, voluntário e sigiloso, aplicado por um terceiro neutro e especialmente treinado, cujo objetivo é restabelecer a comunicação entre as pessoas que se encontram em um impasse, ajudando-as a chegar a um acordo”.
“O mediador é um facilitador do processo de retomada de um diálogo truncado. Diversamente do árbitro ou do conciliador, ele não interfere diretamente, mas ajuda as partes – no caso de processos judiciais –, ou as pessoas que se encontram em situação de disputa a encontrar, elas mesmas, as saídas e alternativas que mais lhes convêm. Por meio do uso de técnicas específicas e utilização de conhecimentos advindos de várias disciplinas e ciências como a psicologia, psicanálise, direito, teoria da comunicação, teoria do conflito etc., o mediador restabelece as ligações que foram rompidas pela má condução ou exacerbação de um conflito.”
Ele “cataliza” a comunicação.
O que é preciso para ser um mediador:
1.Admitir que resolver os problemas pelos outros não os dignifica. Quando a pessoa contribui para a solução do problema ela sente-se importante e recompensada
2. Pressupor que quando duas pessoas estão em disputa elas perderam a capacidade de dialogar entre si. Esse diálogo precisa ser restaurado ou instaurado através da mediação.
Deve-se levar em conta também que se uma pessoa for a mais frágil ela sempre ficará no prejuízo se não houver mediação.
3.Ter interesse em saber o porquê. Compreender antes de agir e opinar.
4.Não buscar culpados, mas co-responsáveis. Na culpa há penalidade. Na co-responsabilidade há a reparação do dano. “Culpa ou castigo envolve exclusão e rótulos, a responsabilidade não”( SCHEMES, 2009).
O que deve ser levado em conta ao envolver-se em uma mediação.
Segundo Schemes (2009):
No processo de mediação escolar é fundamental garantir a liberdade e o respeito do outro sem imposições da autoridade, pois essa imposição gera lutas pelo poder. O enfrentamento direto não é a melhor alternativa na resolução de conflitos dentro da escola.
O conflito se estabelece quando queremos que o outro aceite a nossa vontade. Os conflitos interpessoais surgem na tentativa de querer que os outros queiram e desejem o que queremos. A mediação é um processo que analisa o conflito em si e suas manifestações. A expressão ou manifestação do conflito deve ser analisada pela mediação para levar ao conflito em si, ou seja, o que está causando esta manifestação. [...]
Todos devem saber igualmente criar um diálogo para encontrar uma solução em que todos ganhem, sem perdedores.
Na mediação escolar é fundamental que o mediador seja capaz de separar os fatos da fantasia.
Ser completamente imparcial é outra característica. A questão (problema ou conflito) tem duas dimensões: o que é manifesto e o que é subjacente ou as motivações. O mediador deve ser hábil em eliminar a oposição entre as partes envolvidas no conflito. Colocar questionamentos às partes é um procedimento próprio para a mediação escolar. Questionar para que as pessoas envolvidas eliminem certezas. O negativo são as certezas, as dúvidas permitem ampliar as questões subjacentes. As certezas fecham e limitam. Questionar leva à reflexão. As motivações conscientes e inconscientes devem ser trabalhadas. A mediação propõe um estado de questionamento permanente.
Faz parte do papel do mediador
Criação de opções - que caminhos seguir? Entre os conflitantes, um vai incentivando o outro para encontrar diferentes soluções. A análise da melhor opção leva ao compromisso de todos os envolvidos, motivados não pelo medo, mas por satisfação mútua. Esse compromisso é com o que pode ser realizado no presente e no futuro.
Nesse processo é importante ressaltar as funções do mediador:
1. Acolher sem pré-julgamentos ou pré-conceitos;
2. Ganhar a confiança por meio da imparcialidade;
3. Introduzir o respeito, mais pelo exemplo pessoal do que pela hierarquia;
4. Conseguir cooperação eliminando disputas;
5. Promover a criatividade na resolução do conflito e solução do mesmo;
6. Capacitar em administração de conflitos;
7. Promover a co-responsabilidade entre as partes envolvidas e não a culpabilidade. Vale lembrar que cada mediação é única e personalizada, pois está inserida em seu contexto peculiar.
A administração dos conflitos não deve impor motivações de qualquer lado, e também não pode estar limitada na conciliação deixando as pessoas parcialmente satisfeitas (acordo na base da barganha). Mas deve promover a cooperação entre as partes envolvidas deixando-as 100% satisfeitas. Ao lidar com conflitos, o mediador estará lidando com emoções.
Mas o que tem a ver mediação com a ética profissional?
Onde o professor trabalha não há conflitos? Professores e alunos vivem sempre em harmonia? Os colegas de trabalho estão sempre em equilíbrio?
É possível imaginar um coordenador escolar ou de curso, um diretor escolar ou um o tema para profissional com curso superior que não saiba mediar conflitos no seu ambiente de trabalho?
Os professores de cursos de licenciatura deveriam incluir uma postura de mediação e um debate sobre o tema visando o preparo do futuro profissional.
4. A Xerox indireta
Nesta época em que se intensifica o combate à cópia muitos professores universitários, por “questões éticas”, não disponibilizam capítulos de livros para que os alunos copiem. No entanto esse mesmo professor escreve o livro inteiro no quadro. O que estamos chamando de xerox indireta.
Na educação básica os livros são distribuídos pelo governo e ainda assim alguns professores, para não ter que preparar a aula, preferem passar a “matéria” (tirada de outro livro) no quadro, como forma de evitar comentários, perguntas etc.
Nos dois casos quando termina a cópia o professor limita-se a reler o que ele escreveu como se isso fosse uma explicação.
É uma explicação do que está escrito mas não é explicação do significado do que está escrito.
Há os casos de professores que preparam aula em power point e depois apenas leem tudo o que está escrito. Quando o aluno diz não ter entendido então o professor apenas repete o que está escrito, de forma mais pausada.
Depois da aula o professor disponibiliza os slides para cópia. Muitos alunos se perguntam se é preciso assistir a uma aula dessas. Não bastaria ler os slides?
O particular e o universal
Uma fonte de conflitos éticos para o professor reflexivo se assenta sobre essa questão.
Todos os alunos têm que aprender os mesmos conteúdos ao mesmo tempo? A ementa deve ser cumprida a todo custo? Se um aluno apresenta dificuldade o que fazer com ele?
Pode-se defender que a instrumentalização do aluno através do conhecimento significa disponibilizar a ele o mesmo conhecimento disponibilizado aos outros. E esse pressuposto pode resultar na compreensão de que o aluno precisa aprender o mesmo que os outros aprendem. Precisa ser igual para competir.
Por outro lado há que se perguntar se tal conhecimento é essencial à vida, e se o aluno precisará dele para viver. Se não estará na diferença a sua possiblidade de ocupar um espaço.
A sociedade necessita de profissionais da mais variadas áreas de conhecimento e de competências diferentes em conhecimentos específicos. Na matemática, por exemplo, há necessidade de alguém que domine muito bem o cálculo e de outro que domine muito bem a álgebra. Nesta sociedade plural é na diferença que está a oportunidade de todos.