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domingo, 26 de fevereiro de 2012

CIÊNCIA MORTA? –II


 Depois que escrevi o texto sobre esse tema tentei buscar mais exemplos. Recheio os meus textos com metáforas porque tenho um racicínio imagético. Penso a partir de imagens.
Pensei em um carrinho de tração animal que muitos chamam de carroça.
Esse carrinho, embora seja uma “máquina” simples foi projetado arquitetonicamente. O que pensou o arquiteto eu  não sei porque nunca vi um manual de construção de carrinhos, mas coneço pensando na participação dos seguintes sujeitos envolvidos no processo:
1.      O animal. Para ele o projeto arquitetônico é algo morto. O carrinho já está construído e resta-lhe saber que  tem de puxá-lo. Se é possível modificar o carrinho ou a carga é algo que não lhe diz respeito. Cabe-lhe puxar o carrinho e nada mais.
2.      O carroceiro. A cada vez de carregar o carrinho ele começa pensar em como distribuir a carga para ficar mais leve para o animal, para não causar avarias no carrinho, etc. Para ele o projeto arquitetônico, por vezes, é objeto de inquietação, tem resquícios de vida, é meio morto.
3.      O arquiteto. Ele pergunta: Como alterar o projeto para tornar o carrinho mais funcional?  Qual o comprimento ideal dos varais para que o animal tenha mais conforto? Com que material deve ser fabricada a sela para não causar danos ao animal ou ser dispendioso ao carroceiro? Para ele o projeto ainda está vivo.
Sou professor de matemática e posso ver no meu aluno o animal. Posso dizer-lhe apenas: “copie isso e resolva os exercícios”, “é assim que é a matemática”, “matemática se aprende resolvendo exercícios”.
Não sei se algum professor faz isso, mas é uma opção. Se alguém procede assim está trabalhando uma ciência morta e roudando a humanidade do aluno.
 A segunda opção é considerá-lo como o carroceiro. Nesse caso, eu lhe digo: “matemática só tem duas opções: (certo e errado). Modos de fazer tem alguns e você pode escolher dentre eles, mas tem que dar certo”. “Não adianta driblar  bonito e errar no chute. Não marcou gol perdeu o jogo.”
O colega conhece alguém que faz isso?
A terceira opção é ver o aluno como o arquiteto. Posso dizer-lhe: “O que dá para mudar e tornar isso mais funcional?”. ´Tente outro caminho: se der errado tente explicar porque dá errado. Se der certo, por que dá certo se o caminho é outro? ”.
Pergunto ao leitor: É possível fazer isso? Que fundamentação teórica teríamos para fazer isso?
Leio nos PCN de Matemática dos anos finais do ensino fundamental
Para atender as demandas do trabalho contemporâneo é inegável que a Matemática pode dar uma grande contribuição à medida que explora a resolução de problemas e a construção de estratégias como um caminho para ensinar e aprender Matemática na sala de aula. Também o desenvolvimento da capacidade de investigar, argumentar, comprovar, justificar e o estímulo à criatividade, à iniciativa pessoal e ao trabalho coletivo favorecem o desenvolvimento dessas capacidades ( BRASIL, 1998, p. 34)

Como um incentivador da aprendizagem, o professor estimula a cooperação entre os alunos, tão importante quanto a própria interação professor-aluno. O confronto entre o que o aluno pensa e o que pensam seus colegas, seu professor e as demais pessoas com quem convive é uma forma de aprendizagem significativa, principalmente por pressupor a necessidade de formulação de argumentos (dizendo, descrevendo, expressando) e de validá-los (questionando, verificando, convencendo) (BRASIL, 1998, p. 38)..

comunicar-se matematicamente, ou seja, descrever, representar e apresentar resultados com precisão e argumentar sobre suas conjecturas, fazendo uso da linguagem oral e estabelecendo relações entre ela e diferentes representações matemáticas (BRASIL, 1998, p.48).

O leitor teria algum teórico para compartilhar conosco? Tem outra ideia? Discorda da proposta? Por quê?

Nova Andradina, 19 de fevereiro de 2012.
Antonio Sales  profesales@hotmail.com

sábado, 18 de fevereiro de 2012

CIÊNCIA MORTA?

Em um dos meus textos falei que alguns professores apresentam ao aluno uma ciência morta ou matam-na ao apresentar. Sou professor de matemática e é o ensino dessa ciência que tomo como base para as minhas reflexões. Não sei como seria uma história viva, uma geografia viva, etc. Posso falar em matemática viva ou matemática morta. Para falar de matemática viva recorro a Bento de Jesus Caraça um matemático, humanista e político português e aos Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática (PCN) dos anos finais do ensino fundamental.
Antes de ir a Caraça e aos PCN permita-me recorrer à minhas costumeiras metáforas para explicitar o meu pensamento.
Em alguns momentos, isto é, circunstâncias ou até condições de vida basta-nos uma ciência ou uma arte morta mesmo. Se preciso apenas apertar um parafuso que, se não for apertado não causará, de imediato, grande transtornos, não preciso saber muita técnica, não preciso saber a força do aperto e basta-me um alicate. Não preciso nem mesmo saber porque apertei ou deixei de apertar o parafuso. Porém, se sou um mecânico que vou me responsabilizar pelos resultados do meu trabalho e que por vezes encontro parafusos soltos em posição pouco favorável preciso de algo mais do que alicate e saber dar voltas com a mão para uma certa direção. Preciso, além do conhecimento técnico, de ser capaz de pensar sobre o que vou fazer e até mesmo de explicar porque fiz ou justificar o preço que cobrei. Nesse caso, não me basta o conhecimento de uma ciência ou uma técnica morta. Aquela do tipo: faça assim.
Se quero penas tomar um chá, bastam-me algumas folhas que podem ser secas desde que  tenham sabor agradável. No entanto, se sou um especialista em saúde e vou receitar o chá para alguém preciso me preocupar com algo mais do que com o sabor, preciso saber quais as possíveis reações que ele provocará no corpo humano. Preciso fazer associações.
Com essas metáforas quis apenas dizer que é possível que em certas circunstâncias uma ciência ou uma arte possa mesmo ser morta. Para quem não precisa pensar sobre, bastam algumas técnicas.
No dia dois de fevereiro de 2012 o professor e autor de livros didáticos de Matemática, Luiz Márcio Imenes, esteve em Nova Andradina, MS, realizando uma oficina com os professores da Rede Municipal. Quando  ele expunha, em outras palavras e bem mais elaboradas, o estou tentando expor, uma jovem professora dos anos iniciais que estava ao meu lado confidenciou: “o noivo da minha colega é estudante de Engenharia Química e se sai muito bem nas provas de matemática. Interrogado, sobre essa sua facilidade, respondeu: eu não brigo com a matemática, faço o que o professor manda e tiro a nota”.  Não conheço o espectro de atuação de um engenheiro químico, mas é possível que a especialidade que ele escolheu precise da matemática apenas como ferramenta para alguns cálculos que já estão padronizados. Nesse caso, para ele a matemática pode ser morta, pode ser aquela que já está na calculadora ou no Excel.
No âmbito da educação básica que não tem por objetivo preparar para determinado tipo de trabalho, onde precisamos preparar para pensar sobre o que faz, podemos apresentar uma ciência morta? E na licenciatura?
Mas o que é uma ciência morta?  Vamos a Caraça (1989).
Esse pensador observou que se pode olhar para uma ciência como ela está posta nos livros, como um produto acabado. Algo pronto. Nesse caso, embora haja um todo harmonioso, ela é  inerte e já sem vida para o estudante que se limita a contemplá-la como obra de arte. Algo lindo, mas que ele não tem participação na sua construção, não tem a pincelada dele. A ausência de contradições com que é apresentada (nos livros) esconde o trabalho árduo de construção sobre o qual os matemáticos se debruçaram durante meses ou anos em cada tema, em cada produção. Tem–se a impressão de que um gênio, saído da garrafa, abençoou o matemático e ele saiu produzindo espontaneamente toda aquela beleza que está posta ali.
Essa visão é, de alguma forma, desestimulante. Quando vejo uma obra de arte de um grande artista e não tenho a mínima ideia dos esboços que ele fez, do tempo que gastou para produzi-la, sinto-me tão pequeno, tão insignificante artisticamente, que perco a esperança de produzir um quadro como aquele.
Outra forma de ver uma ciência, segundo o mesmo autor,  é como um trabalho progressivo em que é possível “acompanhar” os percalços de sua construção percebendo as dúvidas e hesitações em cada passo.
“Encarada assim,  aparece-nos como um organismo vivo, impregnado de condição humana, com as suas forças e as suas fraquezas e subordinado às grandes necessidades do homem na sua luta pelo entendimento e pela  libertação; aparece-nos, enfim, como um grande capítulo da vida humana social” diz Caraça (1989, p.xiii ).
O que Caraça quis dizer com isso? Penso que isso significa que os alunos devem ser colocados em posição de quem devem conjecturar,  testar as conjecturas e descartá-las ou aprová-las. Devem ser informados, tanto quanto possível, das idas e vindas durante a produção de um teorema, e assim por diante. Suas tentativas devem ser estimuladas, certos erros tolerados e trabalhados pedagogicamente.
Se Matemática é produção humana alguém deve ter errado alguma vez na sua produção. Deve ter riscado muito papel para chegar à conclusão a que chegou.
Muitos professores reclamam que os alunos não têm estímulo. Quem teria estímulo  para ficar repetindo o que já está pronto? Ficar tentando pisar em cima do rasto do outro é estimulante?  Criança gosta de imitar e talvez seja por isso que as crianças, quando entram na escola, vibram com a matemática que está lá para memorizar e repetir. Mais tarde, quando já querem pensar, se tornam enfadadas com o que lhes é apresentado. Nem todas, é claro. Há quem goste de passar a vida toda copiando do quadro e tentando seguir o modelo.
Como mudar esse quadro, esse de apresentar a ciência morta? É preciso romper paradigmas. É preciso apostar.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática (PCN) veem com preocupação o fato de a História da Matemática não ser incluída nas aulas do ensino fundamental. Não se trata daquele recorte de história que alguns livros trazem no início ou final do capítulo. A história deve ser incluída no diálogo do professor  com o aluno enquanto discutem um conceito. A perspectiva aqui é de um professor que estuda continuamente, um intelectual. Alguém que sabe mais do que repetir exercício. É possível? Creio que sim.
Consta ainda no documento citado (PCN) que:
Esta visão opõe-se àquela presente na maioria da sociedade e na escola que considera a Matemática como um corpo de conhecimento imutável e verdadeiro, que deve ser assimilado pelo aluno. A Matemática é uma ciência viva, não apenas no cotidiano dos cidadãos, mas também nas universidades e centros de pesquisas, onde se verifica, hoje, uma impressionante produção de novos conhecimentos que, a par de seu valor intrínseco, de natureza lógica, têm sido instrumentos úteis na solução de problemas científicos e tecnológicos da maior importância.
Em contrapartida, não se deve perder de vista os caracteres especulativo, estético não imediatamente pragmático do conhecimento matemático sem os quais se perde parte de sua natureza (BRASIL, 1998, p. 24, grifos nossos)
Que beleza há na matemática composta apenas de aplicação de fórmulas?
Continua o documento:
“ Fruto da criação e invenção humanas, a Matemática não evoluiu de forma linear e logicamente organizada. Desenvolveu-se com movimentos de idas e vindas, com rupturas de paradigmas” (BRASIL, 1998, p. 25)
Mas os PCN dizem ainda que:
O advento posterior de uma multiplicidade de sistemas matemáticos e teorias Matemáticas evidenciou, por outro lado, que não há uma via única ligando a Matemática e o mundo físico. Os sistemas axiomáticos euclidiano e hiperbólico na Geometria, equivalentes sob o ponto de vista da consistência lógica, são dois possíveis modelos da realidade física (BRASIL, 1998, p.25 )

Este último parágrafo expressa uma verdade pouco percebida. A verdade que apresentamos não é única, nem mesmo na Matemática. É preciso ter outro olhar.
Deixo uma questão que embora não diretamente relacionada ao texto suponho que mereça reflexão.
Será que o professor  que ainda “passa matéria no quadro” para os alunos copiarem numa época em que os livros abundam, a cópia reprográfica e o Google estão disponíveis em toda parte, não está contribuindo para a “morte” da ciência?
Nova Andradina, 04 de fevereiro de 2012.
Antonio Sales  profesales@hotmail.com

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Matemática. Brasília: MEC/SEF, 1998.
CARAÇA, Bento de Jesus. Conceitos fundamentais da matemática. 9. ed. 
Lisboa: Sá da Costa, 1989.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

HUMANIZAR O PROFESSOR: O QUE É ISSO?

Estava revisando um texto que havia escrito recentemente, em parceria com uma colega cujo nome não declino aqui por não ter solicitado a sua permissão, quando deparei com a frase: “Dessa forma, supúnhamos que estaríamos contribuindo para a humanização do professor”. A frase foi inspirada em  Paulo Freire e fiquei me perguntando: o que significa isso que escrevemos? O que é humanizar o professor?
Os meus leitores já sabem que gosto de exemplificar o que escrevo ainda que os exemplos sejam hipotéticos.
Fiquei pensando na possível experiência de uma garota  da primeira metade do século passado. Naquela época assuntos relacionados com a sexualidade eram tabus. Raramente uma mãe conversava tal assunto com a filha. Escondia-se até mesmo a gravidez da mãe e das vizinhas com a estória da cegonha. Fico imaginando quando aparecia, para essa menina, a menarca. Devia ficar assustada, supondo-se portadora de algum mal, alguma infecção ou ter se machucado sem saber. Somente após conversar com alguma colega mais experiente e saber que esse não era um problema particular, algo específico dela, mas um fenômeno físiológico de todas a mulheres, ela sentir-se-ia aliviada a até orgulhosa, talvez. Orgulhosa por ser parte legítima daquele grupo que tinha o mesmo fenótipo que ela.
A esse fenômeno social de sentir-se parte, isto é, perceber-se com as mesmas características do grupo (classe social,  gênero, espécie ou profissão) à qual pertence, chamo de humanização. Sentir-se humano é ter conciência de que certas  características (problemas, necessidades e privilégios) não são particularidades suas.  Elas pertencem a todos do mesmo grupo. Nesse caso, a conversa com a colega contribuiu para humanizar a garota.
Quando adolescente passei pelo processo de mudança de voz. Minhas irmãs zombavam de mim e comecei entrar em processo de isolamento. No dia em que meu pai se posicionou dizendo que aquele era um processo normal cessou a zombaria e  eu saí do isolamento. Senti-me normal, humanizei-me, senti-me homem como os outros. A fala do meu pai humanizou-me. Fiquei sabendo que eu não era uma aberração da natureza.
Quando acontece um acidente trágico,  e algumas vidas são ceifadas, os familiares costumam dizer: “por que com o meu filho?”
É evidente quem em um momento como esse é melhor não dizer nada, mas se fosse para dizer eu diria: isso aconteceu com vocês porque vocês são humanos. A morte em um acidente trágico não é “privilégio” ou desgraça de uma família ou pessoa específica. Pode ser a “sorte” de qualquer um. Uma família humanizada, supostamente, teria outro tipo de lamento. Saberia que o seu filho não estava marcado para morrer daquela forma, o acidente não foi “feito” exclusivamente  para ele.
Suponho que essa introdução tenha contribuído para o entendimento da palavra humanizar neste contexto.
Pensemos agora no professor. Parece-me que muitos se sentem um ser à parte da especie humana. Um aleijão social. Sentem-se vitimas exclusivas do sistema, os únicos marcados para serem desrespeitados e pensam que é a única profissão desvalorizada pela sociedade. Na esfera individual, então, os lamentos vão mais longe. Cada professor sente-se o único cobrado  pelo sistema ou chamado a prestar contas pelos gestores.
Em meus textos neste blog tenho procurado mostar ao professor que muitos problemas são próprios da categoria. Tenho procurado humanizá-lo, mostrando-lhe que todos enfretam os mesmos problemas. Os chamdaos “ossos do ofício”. As diferenças ficam por conta da intensidade e da forma de administrar tais problemas. A intensidade depende do contexto e do tempo.
Temos visto a imprensa, frequentemente, “malhar” a polícia, os políticos, os membros do judiciário,  clínicas, escolas particulares  e assim por diante. Não vou emitir juízo de valor sobre o que a imprensa faz,  quero apenas lembrar o professor que não é só ele que está na “mira”de alguém. A sociedade está cobrando de todo mundo. A forma de cobrar pode até ser diferente, mas há pressão por toda parte. Sofrer pressão não é “privilégio” do professor, embora muitos gostariam que fosse para terem do que reclamar.
Cada profissão tem os seus problemas específicos, mas os tem. Um caminhoneiro poderá não ter que prestar contas a alunos, pais de alunos ou sistemas de ensino, mas  terá que trocar pneus pesados ao longo e rodovias, algumas sem acostamento e com pouco movimento. Precisa ficar vários dias ausente da família e ainda corre o risco de ser vítima fatal de um assalto ou acidente. São problemas próprios da profissão. Toda pessoa tem suas dores. São diferentes das minhas dores, mas são dores.
Não estamos defendendo a permanência desse estado de coisas. O que pode melhorar deve ser melhorado. Devemos lutar por melhorias. Nossa proposta é apenas dizer: o magistério não é a única profissão com problemas. Você, colega, não é o único a enfrentar dificuldades. Não é o único a errar no exercício da profissão. Não é o único profissional ou pessoa que é cobrado pelo resultado do seu trabalho.
Você pode ser o úncio que não assumiu a profissão porque assumir uma profissão é uma questão de escolha. Humanizar-se é questão de consciência e também de escolha, portanto, você pode também ser o único não humanizado, a não sentir-se parte da espécie humana.
Entendo que nos cursos de formação de professores precisam trabalhar na perspectiva de humanizar o professor. Para complementar o pensamento aqui expresso recomendo:  http://eticadocentesales.blogspot.com/2012/02/sala-de-aula-lugar-de-conflitos.html

Nova Andradina, 11 de fevereiro de 2012
Antonio Sales                             profesales@hotmail.com

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

SALA DE AULA: LUGAR DE CONFLITOS

Uma coisa que me faltou quando fiz licenciatura é que ninguém me disse que sala de aula é lugar de conflitos. Aliás, estudei para ser professor e ninguém me disse como administrar internamente os conflitos de interesse que se instalam normalmente na sala de aula. Devo dizer que é possível que nenhum professor meu pensasse sobre isso. Na época supunha-se que para ensinar Matemática bastava saber Matemática. Ainda hoje há quem pensa assim. Chamo isso de ingenuidade, não importa o título de quem suponha tal coisa.
Estágio naquela época consistia em apenas constatar as possíveis falhas do sistema e também da metodologia do professor. Não havia reflexão sobre os conflitos existentes. Era só preencher relatórios. Logo, estágio também não ajudava.
Saí da faculdade pesando que estivesse pronto para realizar um bom trabalho. Sabia razoavelmente a ciência e estava cheio de boa vontade. Tinha tudo, pensava eu.
Logo em seguida passei no concurso e assumi, no meio do ano, as aulas de um colega, não formado, que trabalhava há anos na mesma escola. Sabendo que ia perder a vaga para um recém-concursado ele não se deu por vencido. Deu-se ao trabalho de dizer para os alunos que estava sendo injustiçado e que o novo professor (ele nem sabia quem seria), com certeza, não saberia mais do que ele.
Quando cheguei o clima estava tenso. Os alunos diziam à meia voz de modo que eu pudesse ouvir: “tomou o lugar do outro, mas sabe menos”, “deixou o outro desempregado”.  Riam de mim, imitavam os meus gestos. Eram alunos do 6º ano.  Não desisti porque precisava trabalhar, mas confesso que não estava preparado para administrar, pelo menos internamente, o conflito. Penso que o leitor já imaginou o desgaste emocional.
Este é um caso específico  e naturalmente não se repetiu com mais ninguém, mas outros conflitos de interesses não cedem espaço. Os alunos não têm também os seus interesses que são contrários aos nossos? Os pais sempre entendem a nossa posição? Todos os gestores escolares agem da mesma forma em relação a nós? Todas as turmas apresentam a mesma produtividade?
As turmas são todas diferentes. Mas não é só isso. O coeficiente de variação de uma turma também é diferente do coeficiente de variação da outra.  Isto é, todas as turmas são diferentes, mas essa diferença não é apenas em relação a mim ou em relação à aprendizagem. Elas são diferentes também nas relações que os alunos estabelecem internamente, entre eles. O coeficiente de variação tem espectro mais amplo do que se imagina.
São dessas coisas que eu gostaria que alguém tivesse me alertado. Eu teria sofrido menos, me culpabilizado menos, gastado menos tempo me justificando, reclamado menos e, quem sabe, ousado mais.
A sociedade é um espaço de conflitos. A escola é parte da sociedade, logo, a escola é lugar e conflitos. E a sala de aula?
Todos os alunos vêm satisfeitos para sala de aula? Todos eles gostariam de estudar? Todos receberam a mesma educação familiar?
Aqui está, no meu entender, o problema do mal-estar geral entre os professores. Eles pensam que vão chegar à escola  e encontrar alunos ansiosos por aprender, felizes por vê-los lá, dispostos a morrer por eles (pelos professores). Quanta ilusão! Quanta desilusão! Muitos se parecem aquelas “noivinhas” que se casam sonhando com a felicidade plena. Creio ser por essa razão que o nível de frustração é muito grande.
Professor foi contratado para ensinar quem não quer aprender, para orientar pais que não querem saber dos filhos, para incentivar e cobrar posição de colegas que já esmoreceram. Professor existe para ajudar a debelar a ignorância humana e não para administrar as belezas da ciência.
Há poucos dias um colega me disse, em tom melancólico, que professor vive na “linha de fogo”. Fiquei quieto temendo ofendê-lo, mas confesso que pensei: quem foi convocado para a guerra  onde mais deveria estar? É possível que haja guerras menos trágicas do que outras, mas, ainda é guerra.
Nova Andradina, 04 de fevereiro de 2012
Antonio Sales    profesales@hotmail.com

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

PROFESSOR SABE FAZER APOSTAS?- III



Para aposta nos outros é preciso apostar em si mesmo. Professor sabe apostar em si mesmo?
Quem tem medo de errar não ousa. Que não ousa não faz apostas, não acredita no seu potencial. Não ousa porque não sabe administrar o possível “fracasso”.
Apostar em si mesmo e no outro é correr riscos de “fracassar”. É preciso coragem e compromisso com a sociedade.
Falei em erro, na ousadia de arriscar a cometer erros. Não estou pensando nos erros estúpidos, nas ações programadas para prejudicar. Fazer algo mal feito para provar que o projeto proposto não dá certo  é estupidez, não é erro. Atacar o outro apenas para vê-lo derrotado é desumano, especialmente  se ele não veio para lutar contra nós. Atacar um projeto somente para esconder a minha incompetência para executá-lo é covardia. Não falo desse erro. Sou contra a falta de ética, contra a imoralidade, contra a covardia.
Falo do erro de processo. Daquele plano que você faz para dar certo e dá errado porque alguma coisa não prevista aconteceu. Porque interesses contrários intervieram. Coisas “invisíveis a olho nu” estão em todos os lugares. É difícil prever todas. O inesperado acontece.
Gosto de exemplos que ilustram a minha fala. Penso no artilheiro que foi escalado para chutar a bola. Ele almeja ver a rede balançando e planeja com cuidado o canto onde a bola vai bater. Inclina o corpo cuidadosamente, planeja a velocidade que dará maior impulso e imprimirá maior velocidade à bola. Ele chuta certo da vitória quando o goleiro “aparece’ na frente e intercepta a bola. Não houve fracasso. Ele sabia que isso poderia acontecer. Todos sabiam dessa possibilidade. O goleiro estava lá para isso. Ele também fez os seus planos, também cumpriu a sua parte. O artilheiro não “viu” que a bola poderia passar mais perto do goleiro do que ele imaginava ou que o goleiro poderia pular exatamente para aquele lado. Fragilidades humanas. Limites difíceis de serem transpostos. “Coisas invisíveis”!
Seria injusto se o goleiro fingisse não estar se importando e aparecesse na hora apanhando o artilheiro de surpresa. Mas, ele estava lá e revelou também a sua intenção. Uma luta entre iguais. Os dois agiram com seriedade. Não houve maldade. Ninguém fez feio. Cada um fez o que devia ter feito. (Obs. É por isso que não entendo os torcedores de futebol. Tudo me parece tão lógico, tão artístico, tão belo que não vejo porque desejar que um perca e o outro ganhe.)
Não é feio não acertar. Feio é não tentar fazer algo diferente. Feio é ser mal intencionado, é buscar culpados, é provocar o outro para se desculpar. Feio é não assumir que errou, exceto quando alguém mal intencionado feriu a sua dignidade ou atrapalhou propositadamente os seus planos. Feio é assumir compromisso e depois ficar procurando desculpas para não cumprir a sua parte.
No exercício da profissão erramos muito, mas não podemos ser teimosos. Não podemos insistir no erro só porque nossos antepassados faziam assim. É preciso pensar no que se faz. Pensar para mudar estratégias, não para buscar culpados exceto quando eles se revelam claramente. Imprevistos acontecem, é preciso não esmorecer diante deles.
Há acertos que são feios. É feio acertar um chute em um cão ou um tiro em uma pessoa. É feio ferir propositadamente alguém, embora quem feriu tenha acertado em suas intenções. É feio colar, embora tire boa nota na prova. É feio copiar o livro no quadro para que o aluno transcreva para o seu caderno e ainda considerar-se professor. Nesse caso, é mais decente o aluno xerocopiar o livro.
Há coisas feias que se praticam o tempo todo e ninguém parece reclamar. São usuais.  Há cosias bonitas que ninguém ousa praticar porque não são usuais. É preciso romper paradigmas para apostar.
O professor precisa fazer apostas em si mesmo. Quem fica preocupado em não “fazer feio” não ousa. É por isso que professor quer tudo pronto. Ele quer que o sistema lhe forneça tudo programado. Ele segue o índice do livro e quer um livro que esteja na sequência das diretrizes curriculares. Medo de “fazer feio”, medo de ser ele mesmo, medo de ser gente. Prefere ser máquina. Máquina não erra. 
Para apostar em si mesmo é preciso distinguir o feio do bonito em termos de comportamento. Se esse dois conceitos estivem nebulosos não haverá aposta em ninguém.
Quando se faz bonito pensando que é feio e se faz feio pensando que é bonito, é triste. O professor precisa pensar sobre isso. Quem educa, quem tem sobre os seus ombros a responsabilidade de atuar na sociedade precisa ter certas clarezas.
Professor que segue ementa mesmo vendo que ninguém está aprendendo não é professor, é uma máquina de dar aulas. Professor que não dialoga não é humano. Professor que somente busca culpados é pobre intelectualmente. Professor que se impõe pela  ameaça de notas baixas é um fracassado.
Professor que não ousa, que quer tudo pronto, que não acredita em si mesmo é medíocre. Quem é medíocre não aposta em si mesmo e nem nos outros.
Professor que quer apostar em si mesmo e  nos outros deve sair da mesmice, deve ousar.
Campo Grande, 18 de janeiro de 2012.
Antonio Sales    profesales@hotmail.com